“Deixando falar a saudade
Depois do que já disse e escrevi sobre Luís Derouet antes e depois do seu trágico fim, que me restará dizer publicamente? Do jornalista acentuei a devoção profissional e o “savoir-faire” indiscutível, o sentimento da oportunidade e o comedimento dos processos: o zelo apaixonado e a probidade inatacável que caracterizaram a sua longa actividade na imprensa. Do republicano, que alguns, tendo-o visto renunciar ao afan militante e aos postos de realce, dalgum modo cuidavam debilitado na sua fé, e, como cético, rendido acomodaticiamente á cortesania do triunfadores episódicos, salientei logo após a sua morte, junto mesmo dos seus despojos, tendo à minha frente, ouvindo-me, os mais altos representantes do poder, a coerência e a firmeza que a benignidade do seu feitio pessoal e o travo dos desgostos sofridos temperavam no trato duma larga sociabilidade sem nenhum prejuízo para os princípios a que se cingira desde muito novo. Ao chefe de família exemplaríssimo, marido e pai inexceciveis , cujo lar era um ninho adorável, pela comovente ternura que embalsamava a vida espiritual desse trio amoroso, disse e escrevi, em sóbrias palavras, sentidamente, o testemunho da minha admiração e o preito da minha homenagem. Algumas semanas antes da tragédia horrível que o vitimou, em artigo estampado na imprensa acerca da exposição internacional de “ex-libris” (p. 1), com tanto brilho efectuada na Imprensa Nacional de Lisboa mercê da sua plausibilíssima iniciativa, tive o ensejo de me referir ao modelar funcionário que a República teve a boa fortuna de escolher, logo em seguida ao seu triunfo, para a direção desse tão importante estabelecimento publico cujo serviços incessantemente procurou melhorar, quer por uma criteriosa vigilância disciplinar, através da qual a sua bondade pessoal tantas vezes transpareceu, quer ampliando e beneficiando os seus recursos técnicos, quer ainda atendendo às necessidades familiares dos seus empregados por intermedio da obra de assistência que sob os seus auspícios se levou a cabo e de que aproveitam quantos a dentro da Imprensa Nacional de Lisboa exercem a sua actividade quotidiana. Da saudade que me deixou Luís Derouet falam, porém, mais expressivamente do que todas as palavras que consagrei ao infortunado republicano a cujo funeral, num protesto tácito contra o nefando crime que (…) Lisboa inteira se associou magoadamente, falam as linhas em que tentei vazar a minha gratidão pelo amigo que, num lance amargo da minha vida, para me consolar e para me animar, à hora em que todos os outros meus amigos estavam fazendo, à mesa habitual do seu café a verrina que empeçonha o cavaco politico de todos os dias, soube levar à minha água-furtada o conforto da sua presença, a unção cariciosa da sua amizade, o refrigério da esperança sabiamente instalada. Estava muito doente o meu filho. As palavras com que ele comunicou à indiferente despreocupação dos meus amigos que não tinham tido cinco minutos para pensar no meu filho abrasado por 40º de febre a noticia de que ele estava salvo (pp. 2-3-) tão pouco as esquecerá, rendida até à humildade do reconhecimento mais profundo, a altiva dignidade do meu caracter a que o grande e querido amigo para sempre perdido carinhosamente se referia – não sei se para me sugerir a mágica persuasão de que é, na realidade, ao duro preço das lágrimas, lutando com a adversidade, vencendo-a pela resignação e sublimando-a pelo estoicismo que o homem verdadeiramente triunfa da animalidade e, aureolado pela graça do sofrimento, como que se redime das corrosões intimas do pecado e dos inúteis tormentos do remorso!
Escrever é para mim uma função tão necessária como respirar. Por isso sou sempre sincero. Por isso não serei talvez nunca um artista, antes muito simplesmente assim como um solitário pastor que no ermo, soprando em sua flauta de cana, só sabe que a sua alma se desoprime no solilóquio etéreo em que se exala…A literatura disse-o já – é para mim um desabafo como as lágrimas. Eis porque a mim próprio perguntei o que é depois de que já disse e escrevi publicamente a cerca de Luís Derouet, antes e depois da sua morte, me restará dizer sobre o amigo desaparecido. Num homenagem à sua memória não poderia deixar de figurar quem, como eu, o acompanhou durante tantos anos, num convívio fraternal que em horas tristes hei-de sempre recordar, sensível ao perfume de beleza moral que anda pegado à sua lembrança inesquecível. O trágico fim desse homem que era um paradigma de afectividade, inimigo nato da violência, a quem todos os aspectos ásperos da vida repugnava, deixou-me quase (p.3) estupefacto. De que lobregas cavernas irrompe o ódio ferino que assim fulmina quem não merecia ser tratado com crueldade? Então a bondade é inútil? Então ser clemente e afável não vale de nada? Da provação desse lance guardo para todo o sempre como que a recordação dum pesadelo. Diante do irreparável a revolta impotente desfechou em resignação (…) martirizadas pelo assombro, pelo desencanto, pelo tédio, pela dor. Com o desaparecimento de Luís Deouet um interrogação surgiu, sombria como os lúgubres presságios, no horizonte do meu espírito:
– Terei ainda algum amigo como ele?
O profundo exame de consciência e o mediativo recolhimento a que me submeti para responder-lhe sintetiza a desolação em que me lançou a perda de Luís Derouet. E quer-me parecer que significativamente condensa o enternecimento com que lhe recordo a figura, o gesto, a voz. – a sua individualidade tão curiosa e tão viva, complexo de argúcia e de bondade, de simplicidade e de malicia, na alegria radiante que animava o seu inglório esforço de todos os dias e que só perfeitamente compreendi quando pude sentir até que ponto essa alegria admirável constituía o fruto do lar suavíssimo que era o seu refúgio, o seu santuário – quase tudo para o seu coração excepcional!
Borbon e Meneses” (p. 4)
Observações: Frase relevante sobre a sua nomeação, com a vitória da República, que pode vir a ser usada na exposição.
Foi transcrito tal como está, com os mesmos erros. A folha está muito rasurada e corrigida.
Antes da carta propriamente dita, tem uma folha modelo do jornal O Comercio do Porto, datada de 11 de abril de 1928, e assinada por Bourbon e Meneses, com a seguinte informação:
“Exmo. Snr. Raul de Padua Leal
Acusando a recepção da carta de V. Ex.ª e satisfazendo o seu pedido, inclusas remeto algumas linhas, pelas quais expresso a minha admiração pelas qualidades de trabalho e de inteligência de Luis Derouet, meu saudoso amigo.”