Detalhes de documento

  • Arquivo
    INCM/Arquivo Histórico da Imprensa Nacional
  • Cota
    BINCM_7-2-E-3-1/3
  • Tipo de documento
    Discurso
  • De:
    Carlos Olavo
  • Para:
Transcrição

“Discurso da acusação particular proferido pelo Dr. Carlos Olavo, no Tribunal Militar, na audiência de julgamento de Manuel de Jesus, assassino de Luis Derouet.

Senhor presidente, senhores juízes:
Antes de entrar em quaisquer outras considerações eu desejo cumprimentar estre Tribunal Militar na pessoa de V. Ex.cia, sr. Presidente.
Não é um simples dever de cortesia que eu cumpro. É um acto espontâneo e sincero de resulta d’um sentimento de camaradagem nascido e formado em horas de luta e de sacrifício pela pátria. Eu também fui soldado n’um momento em que o exercito português cumpria a sua alta missão em face do inimigo externo. E n’esse momento não havia ideias que nos separassem, nem interesses que nos dividissem, nem ódios que nos lacerassem, porque todos nós constituíamos uma força indestrutível em defesa dos nossos direitos, das nossas liberdades, da nossa independencia, de tudo quanto constitui o patriotismo moral e histórico que nos ficou dos nossos maiores.
Camaradagens d’estas não se podem quebrar, solidariedades destas não se podem esquecer.
E permita V. Ex.cia que d’entre os membros do Tribunal e sem (p. 1) desprimor para ninguém, eu distinga e escolha para uma saudação particular o sr. tenente-coronel Vasco Lopes de Mendonça, meu amigo, condiscípulo e companheiro, que sentiu e comungou comigo nas mesmas aspirações e nas mesmas esperanças, n’um tempo em que a mocidade portuguesa vivia toda entregue ao culto desinteressado e puro da sua ideia. Essa geração, que eu chamarei a geração do sacrifício porque atravessou a grande guerra e nela sofreu e consumiu algumas das suas melhores energias, que tem vivido as horas dolorosas e agitadas do período, porventura, mais sombrio da história portuguesa, partilhando as suas responsabilidades e os seus riscos; essa geração que temperou o seu caracter nas lutas, nos entusiasmos e nas ansiedades da propaganda republicana e que tirou dela a grande ilusão que ainda hoje guarda intacta e viva no seu coração; essa geração que aprendeu a amar a liberdade e que jamais poderá pactuar com a tirania; essa geração deu soldados e deu cidadãos como esse pobre Derouet que caiu prostrado para todo o sempre pelas balas d’um assassino.
Eis a razão porque eu quis fazer esta saudação especial, desejando saudar a mocidade a que todos nós pertencemos e com ela a memoria de Luis Derouet que bem se pode dizer que presentou as suas melhores (p. 2) e mais generosas aspirações.
Senhores juízes: – a viúva de Luis Derouet não se fez representar n’este processo, como parte acusadora, por um acto de rancor ou por um desejo de vingança.
Estes sentimentos não cabem no seu coração, profundamente dolorido, é certo, mas tão cheio de sofrimento, tão cheio de saudade, tão vibrante ainda das recordações do morto querido, que nele não podem entrar sentimentos d’outra ordem.
Não há nela senão desgosto e luto e lagrimas e n’uns olhos marejados de lagrimas nunca faiscou o ódio.
A minha constituinte só reclama a justiça: a justiça que é devida à memoria de seu marido; a justiça que é necessária para prevenir a repetição de crimes semelhantes; a justiça que é indispensável para impedir que a dor entre noutros lares por esta forma cruel e que sejam assim arrancados à vida os melhores valores e as mais honestas actividades da sociedade portuguesa.
A justiça quando bem compreendida e bem aplicada é um exemplo fecundo.
E esse exemplo é mais do que nunca necessário n’uma sociedade de desorganizada e anarquizada como a nossa em que não há nem noção das hierarquias, nem o reconhecimento dos valores, nem o sentimento da ordem necessária, nem sequer o respeito instintivo pelos direitos sagrados da vida humana. (p. 3)
E a tal ponto, srs. Juízes, que nós temos visto cair, varados pelas balas dos assassinos, quase em plena mocidade e, em todo o caso, no período máximo da sua energia e da sua força, uma serie de individualidades que ocuparam no nosso meio social e politico as mais altas posições e que ao país tinham dado o melhor do seu esforço e do seu valor.
De facto, n’um período rápido, quase vertiginosos, de cinco anos, foram assassinados alguns homens públicos, nas circunstancias mais monstruosas e mais barbaras, alguns dos quais foram horoes da grande guerra e que bem mereciam o reconhecimento da pátria!
Não foi em luta que eles morreram, não foi batendo-se que eles sucumbiram. Não, senhores juízes. Esses homens foram simplesmente assassinados, vil e cobardemente assassinados, sem que pudessem resistir ou defender-se!
Uma sociedade que se encontra n’este estado, dando ao mundo civilizado este espectaculo deprimente, precisa de tratar-se com os exemplos eficazes d’uma justiça implacável.
É esse justiça que a minha constituinte vem reclamar d’este tribunal, com o coração a sangrar de dor, mas serenamente, quasi piedosamente, pelo desejo que tem de que a pena que vai ser necessariamente aplicada ao assassino seja uma garantia para os outros de felicidade que lhe não pode ser conservada e uma salvaguarda (p. 4) para os homens bons, juntos, leais e prestimosos que ainda vivem n’esta terra.
Senhores juízes: – Este crime é incompreensível. Quer dizer, que é inacessível o seu sentido ao espirito d’aqueles que conheceram Derouet, a não ser pela revelação no criminoso de perversidades inéditas.
Eu conheci Derouet desde os tempos, que já vão sendo distantes, da minha primeira mocidade e com este convivi de perto e, durante um certo período, dia a dia.
Tinha, portanto, um conhecimento perfeito das suas qualidades de coração e de caracter.
Derouet era um homem bondoso, simples, delicado, carinhoso para todos os que com ele trabalhavam e ainda para aqueles que d’ele simplesmente se aproximavam.
Para fazer ideia do seu temperamento brando e do seu feitio tranquilo, basta dizer que, no nosso tempo de escola, Derouet era, entre nós todos, um exemplo estanho de cordura, de serenidade e de reflexão. Quando os outros pensavam em publicar um jornal do alto de cujas colunas pudessem invectivar os homens públicos do tempo, quando os outros se entregavam a manifestações violentas de ruido e proteste, quando os outros planeavam contruir as barricadas de Vitor Hugo no alto das quais pudessem morrer (…) quando da parte dos outros só havia a ansia desordenada do combate, da agressão e (p. 5) da revolta, Derouet passava pacificamente em fundar uma escola. E fundou-a, com o concurso da mocidade o seu tempo, e ela por largo tempo existiu [?], ministrando a instrução a muitos dezenas de crianças pobres: a “Escola 31 de janeiro” que foi um monumento do espirito republicano e um testemunho vivo e palpitante da realização d’uma obra de bondade.
Em todos as manifestações da sua vida, como estudante, como jornalista, como político, como funcionário, Derouet foi sempre, caracteristicamente, um bondoso e um moderando. A todos procurava ajudar, a todos procurava servir.
É por isso que é estranho que tivesse aparecido um homem tão cruel, tão injusto, tão perverso, para desfechar a sua pistola assassina sobre uma pessoa como ele!
Senhores juízes: – Há crimes para os quais nós encontramos no foro da nossa consciência uma certa justificação.
São, por exemplo, os chamados crimes da paixão política e religiosa, os actos desesperados dos sectários (…) os desvairamentos irreprimíveis da miséria.
Há mesmo, por vezes, sacrifício, abnegação, grandeza, heroísmo nesses crimes.
Afonso de Lamartine conta na sua História dos Girondinos um caso curioso de abnegação política. (p.6)
(…)
Compreende-se o punhal de Brutus pretendendo libertar o povo de Roma da Tirania de Cesar!
(…)
Entende-se, dentro da logica sombria d’um sonhador patológico, o crime de Luccheni assassinando aquela pobre senhora que foi a velha imperatriz da Austria e que andava pelo mundo, meia demente, meia vagabunda, (p.7) entregue à tristeza irremediável de ter perdido o seu único filho.
Quando perguntaram a Leccheni a razão porque tinha praticado um acto tao abominável e ao mesmo tempo tão inútil para o triunfo das suas ideias, ele respondeu com o seu raciocínio de doido:
– “Matei-a precisamente por ser uma pobre mulher, porque sendo assim, mais flagrante, mais distinta, mais destacada ficava a sua qualidade de imperatriz e foi a sua qualidade de imperatriz que eu quis atingir!”
Este acto cruel é, deste modo, determinado por uma ideia indefensável, absurda, horrível mesmo, mas em todo o caso uma ideia.
Justifica-se o acto desesperado do homem que tem família, mulher e filhos, e que os vê sem pão, na miséria e no sofrimento e que batendo a todos os portões em busca de trabalho os encontra sempre implacável e cruelmente fechados.
Mas o crime do homem que está ali, no banco dos réus, é um crime sem desculpa, sem explicação, sem justificação, sem atenuante de nenhuma espécie.
Em primeiro lugar, Derouet era um grande amigo dos operários, especialmente, como era natural, dos seus operários da Imprensa Nacional que ele estimava, que ele defendia e cujos interesses e direitos ele procurava a todo o custo garantir.
Quando, um dia, uma comissão de tipógrafos sem trabalho lhe falou, solicitando-lhe que lhes fosse dado o trabalho das horas extraordinárias (p. 8 – p.9) dos operários da Imprensa Nacional, Derouet opôs-se logo energicamente a esse cerceamento dos interesses dos seus operários. Tudo menos isso! Tudo, menos prejudicar os seus operários, tudo menos diminuir salários que já de si são insuficientes para fazer face às exigências e às dificuldades cada vez maiores da vida presente.
E por isso ele era respeitado e querido por todos aqueles que trabalhavam sob as suas ordens.
Mas mesmo os outros, os tipógrafos sem trabalho, aqueles que tinham pedido o esforço e a intervenção de Derouet em seu favor, esses mesmos, só tinham obrigações de gratidão e de reconhecimento para com ele
De facto, Derouet fez tudo quanto estava ao seu alcance para valer e ser útil aos tipógrafos desempregados.
De facto, Derouet pôs em acção toda a sua solicitude e toda a sua influencia no sentido de remediar e de resolver a sua critica situação.
E assim, como está afirmado no processo e foi dito aqui, Derouet conseguiu da Misericórdia de Lisboa, um subsidio para os tipógrafos sem colocação, durante quatro semas alternadas, tendo cabido a cada tipógrafo a quantia de 400 escudos.
E desse subsidio, o próprio reu recebeu, como ele confessa no processo e já confessou aqui, a quantia de 100 escudos. (p. 9)
Pode objectar-se que esse subsidio representava para a crise da classe tipográfica apenas um paliativo e não uma solução. É certo. Mas também não é menos certo que o esforço que ele despendeu para o alcançar representou bem a bondade do seu coração, significou bem o interesse que ele tomou pela sote dos que estavam sem trabalho.
Além disso, Luís Derouet não tinha nenhuma responsabilidade na crise da classe tipográfica. Não foi ele que suspendeu os jornais; não foi com a sua aquiescência, nem com o seu acordo, que se atentou contra a liberdade de imprensa.
Pelo contrario. Derouet viu o seu próprio jornal sucumbir sob a pressão asfixiante da censura.
Derouet era um democrata e um homem de princípios e, portanto, a livre expressão do pensamento, clausula sagrada desse Codigo da Democracia que se chama Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, não podia deixar de ser um principio essencial do seu programa.
Derouet tinha pela imprensa uma grande paixão; a imprensa foi o grande ideal da sua vida que lhe absorveu, desde os mais remotos tempos da sua mocidade, os melhores e mais puros entusiasmos da sua alma juvenil.
Nestas condições, Derouet não podia ser, não seria, em nenhuma circunstancia um perseguidor da imprensa; não deu, nem daria nunca, o seu concurso ou o seu apoio a um governo ou a um regime violento (p. 10) que tivesse levado o seu arbítrio até ao ponto de suprimir a grande voz que exprime, na beleza inacessível da liberdade, as cóleras fecundas e as esperanças consoladoras da alma popular!
Mas há mais: Derouet procurou solucionar duma forma completa a crise da classe tipográfica. Foi ele que alvitrou, prometendo nesse sentido a sua colaboração e o seu apoio, que os operários redigissem uma representação pedindo ao governo que não vendesse, como tinha sido resolvido, a tipografia da Biblioteca Nacional para que os desempregados fossem para lá trabalhar por conta da Imprensa Nacional, visto nesta não haver nem lugares nem material.
Mas dentro da própria Imprensa Nacional, Derouet procurou valer aos tipógrafos desempregados abrindo um concurso só para os que estivessem nesta situação. E de 22 que foram a concurso, 12 foram logo admitidos.
E o próprio réu podia ter sido também admitido se não desistisse do seu concurso.
Quer dizer, senhores juízes, que o Reu não póde alegar que fosse um perseguido, visto que, como consta do processo e foi provado aqui, só por um acto da sua livre vontade não faz hoje parte do quadro da Imprensa Nacional. Ele mesmo o dizia ás pessoas que o procuravam convencer a não desistir do concurso: – “Nem só na Imprensa Nacional se ganha dinheiro”. (p.11)
Luís Derouet revelou em todas estas circunstancias uma grande bondade, um grande interesse e um grande desejo de ver não só remediada, mas resolvida a crise da classe tipográfica. Ele só podia merecer, portanto, a esta classe um sentimento de gratidão, nunca um acto de hostilidade e a sua atitude só podia provocar dos operários desempregados um gesto de agradecimento, nunca um gesto de agressão.
Não se póde alegar também que o Reu fosse um desesperado da miséria. Manuel de Jesus não tem família e vivia em casa de Alfredo Ferreira dos Santos, empregado aposentado da Imprensa Nacional, que, como está escrito no processo, lhe fornecia alimentação mesmo nos períodos em que este estava desempregado.
Os senhores peritos que procederam a exames às faculdades mentais do Reu atribuem, em parte, o seu caracter sombrio, o seu feitio concentrado e insociável, à ausência de afectos e de carinhos que assinalou a sua vida quase inteira. Talvez seja assim.
Mas o certo é também, e o facto tem importância para a apreciação das determinantes do seu crime, que este isolamento na vida o isentava de encargos e de atribuições familiares, o punha a coberto de maiores e mais duras responsabilidades como seriam as que resultam da sustentação d’uma família.
O Reu vivia só, numa casa onde lhe não faltava o que era essencial para ir vivendo, mesmo nas horas difíceis de desemprego. (p. 12)
De resto, Manuel de Jesus teve sempre trabalho.
Este próprio diz por diferentes vezes no processo que, desde fevereiro de 1927 até ao momento de praticar o crime, trabalhou na Tipografia da Cooperativa Militar, no jornal O Dia e no Leo Telegrafo Postal; trabalhou na semana anterior e no próprio dia em que cometeu o crime.
E assim, não houve miséria, nem fome, nem vicissitudes de qualquer espécie a desmoralizar o seu animo ou a desvairar o seu espirito.
Outros trabalhadores se encontravam , com certeza, e na mesma ocasião, em circunstancias bem mais precárias, sentindo as consequências da falta de trabalho pesar sobre uma família inteira onde, provavelmente, havia crianças!
E neles não houve, naturalmente, senão o desejo de procurar trabalho, sem que a mais pequena ideia d’um crime que, em definitivo, nada resolve lhes atravessasse a mente.
Senhores juízes: Este crime é imperdoável, nada o explica, nada o atenua: nenhum sentimento, nenhuma ideia, nenhum principio, nenhuma causa por cuja [?] fosse preciso um sacrifício extremo!
Sobre o Reu deve cair, portanto, todo o implacável rigor da lei, toda a inflexível condenação da justiça, como já sobre ele caiu, desde o primeiro minuto do crime, toda a indignada repulsa da consciência social. (p. 13)
Senhores juízes: – Há uma parte do relatório dos peritos psiquiatros com a qual eu não posso concordar.
É quando afirma que Manuel de Jesus é portador de doutrinas políticas ou sociais a cuja influencia se deve, em parte, o cometimento do crime.
Da análise dos factos, da observação minuciosa da vida do Reu, resulta precisamente o contrário.
Não! O Reu nem sequer tem em seu favor a atenuante moral, que não jurídica, de ter sido dominado por uma ideia política, ou por uma doutrina social erradamente interpretada.
Manuel de Jesus era um concentrado, não convivia com ninguém, não frequentava associações nem centros políticos, nunca mostrou entusiasmo, interesse, paixão por qualquer partido, facção, ou seita política, social ou religiosa.
A única indicação que a esse respeito nos fornece o processo é que ele era sindicado: pertencia à federação do livro e do jornal da Confederação Geral do Trabalho. Mas, como é sabido de todos, os sindicatos são agremiações de interesses de classe sem subordinação a partidos, ou a ideias politicas ou sociais determinadas.
Diz-se também no processo, confessa-o ele próprio, que tomou parte na Revolução de Fevereiro de 1927.
Por mais que se discorde dos princípios que inspiraram esse movimento (pp. 14-15) e dos fins que ele tinha em vista realizar, ninguém pode contestar, com justiça, que ele fosse um movimento nitidamente republicano. É admissível que um homem que entra numa revolução republicana vá escolher para sua vitima precisamente um republicano?
É admissível que o odio politico d’um partidário desvairado, ou o rancor d’um sectário fanático, vá cair precisamente sobre um homem que professa as mesmas ideias, que pertence à mesma grei, que comunga nas mesmas crenças?
Não está isso, senhores juízes, dentro da lógica dos crimes políticos, nem na explicação psicológica dos atentados do sectarismo.
De resto, Derouet não era o que se chama uma personalidade politica representativa, não estava investido de nenhum alto cargo governativo, não militava activamente em nenhum partido. Era um simples, um bondoso, um modesto, sem arestas no seu caracter, sem violência nas suas atitudes, sem facciosismos na sua acção. Um homem d’estes não podia provocar um crime político.
Não, senhores juízes. Não há nenhuma ideia no fundo d’este crime. Atribuir-lhe uma ideia seria dar-lhe um pouco de nobreza. E no acto do Reu, não há senão crime, o crime baixo que só encontra as suas origens no odio inferior, na inveja, no despeito, no descontentamento e na cobardia. Sim, na cobardia! (p. 15)
O crime político caracteriza-se, em geral, pela bravura, pela decisão, pela consciência das responsabilidades.
Nos anais da vida judiciária francesa há um capítulo que profundamente me interessou nos meus tempos de estudante e que, pela força da emoção [?] , conservei na memoria alguns dos episódios mais interessantes. É o capitulo constituído pelos processos anarquistas que foram julgados pelas alturas do ano de 1894 (…) Estes homens eram anarquistas, portadores d’uma ideia funesta, interpretando-a mal e procurando propaga-la pelo crime. Mas eram homens a quem se não pode negar uma certa grandeza de atitude até ao último minuto da sua existência. (pp. 16-17)
Manuel de Jesus não é da mesma raça. Em primeiro lugar, o crime é cometido nas circunstancias mais odiosas. O Reu espera Derouet escondido n’um portão, de noite, em plena treva, e quando o vê sair da Imprensa Nacional, atira sobre ele, fugindo em seguida. A sua intenção era furtar-se às responsabilidades do seu acto.
Quando foi preso pediu, em ar de suplica, que o não matassem porque era um tipografo desempregado, procurando assim impor-se à piedade (p. 17) e à comiseração dos que o perseguiam.
Pretendeu eximir-se por duas vezes, no pavor das suas responsabilidades, às consequências do seu crime: uma vez correndo através das ruas escuras e disparando a sua pistola conta quem dele se aproximasse; outra vez, neste tribunal, procurando fugir pela porta d’uma loucura simulada!
Felizmente que os peritos no exame que fizeram às faculdades mentais do acusado formularam a respeito da sua responsabilidade as afirmações mais concludentes e mais decisivas.
Senhores juízes: – Não vou esmiuçar o que no processo existe contra o Reu. Seria um trabalho fastidioso e já agora inútil, visto que o senhor promotor de justiça, com um detalhe, uma lógica e uma força a que não posso deixar de prestar homenagem, pôs em relevo todos os elementos da acusação. De facto, senhores juízes, cada página deste processo é uma prova contra o Reu. Todos os documentos, todas as peças do processo, todos os depoimentos das testemunhas, as declarações do próprio Reu, são de molde a condená-lo por um crime que arrancou à sociedade portuguesa um cidadão prestimoso. É indispensável, portanto, uma condenação que fique como um exemplo e como um castigo.
O Dec. 14.580 de 28 de novembro de 1927 entregou estes crimes ao julgamento de juízes militares para o efeito de tornar a justiça mais expeditiva, mais severa e mais eficaz. Estou certo, porem, que qualquer outro tribunal, constituído por juízes togados ou juízes populares, condenaria da mesma forma, com o mesmo rigor e a mesma decisão o acto abominável que aqui se está julgando.
Esta condenação, de resto, se é imposta em nome do prestigio da justiça, é reclamada também, emocionadamente, pela consciência publica alarmada por tanto crime e tanto sangue inocente derramado.
Senhores juízes: – Eu sustentei que não foi a miséria, nem o desespero, nem o (p. 18) fanatismo político ou social que levou o Reo à prática deste crime. Tenho d’isso a certeza.
Manuel de Jesus é um desses perjuros sinistros e singulares que aparecem na vida predestinados para matar; é um personagem sombrio, como só se encontra nas páginas alucinantes dos romances criminológicos de Dostoievsky, dominado por sentimentos maus, escondendo sob uma aparente serenidade os ódios mais revoltantes e mais inexplicáveis, marchando obstinadamente à procura do homem bom e generoso sobre cuja vida há-de cumprir o seu destino sanguinário.
Há um detalhe neste processo que escapou naturalmente à observação do tribunal, tão insignificante é na aparência. Como arranjou Manuel de Jesus a pistola com que matou Derouet?
Nas suas primeiras declarações, o Reo diz que a tinha encontrado na rua, após o movimento revolucionário de fevereiro. Mas em novas declarações afirma que a pistola com que cometeu o crime foi comprada por ele, há 4 anos, na redacção da Batalha.
Porquê esta contradição? Porquê este desejo, esta preocupação de esconder a verdadeira origem da pistola? Aqui é que está a razão profunda e longínqua do crime que praticou.
Aquela pistola era já um instrumento de crime antes mesmo do Reu ter usado dela.
Em geral, quem compra uma arma fa-lo com o intuito de se defender, ou para defender os seus haveres.
Manuel de Jesus comprou a pistola para matar. Só para matar! E com essa pistola na algibeira foi à procura da sua vitima até que encontrou o pobre Derouet que deixou agonizando num lago de sangue, sem que Derouet, em qualquer momento da sua vida, o tivesse prejudicado ou causado qualquer mal. (p. 19)
Senhores juízes: – É a primeira vez, no decorrer da minha vida profissional que já não é curta, que eu tenho a dura incumbência de acusar um homem. Fi-lo, no entanto, sem constrangimento, nem dificuldade tão repugnante eu acho o miserável que ali está.
E olhando bem parra ele, reparando na sua atitude indiferente e cínica, lembrando-me das lágrimas que ele fez chorar e do mal que causou à sociedade, só uma palavra me acode aos lábios: assassino! Assassino!

***

Este discurso foi reconstituído, a pedido da comissão organizadora do In Memoriam, de harmonia com as notas que tomei quando estudei o processo. Creio ter reproduzido o mais fielmente possível o que disse na sessão do julgamento.
No entanto, não me abalançaria a este difícil trabalho de constituição d’um discurso pronunciado à muitos meses, se não fosse o muito que devo à memória de Derouet e à amabilidade daquela comissão.

Carlos Olavo” (p.20)