Crónica humorística sobre o funcionamento da Fundição de Tipos.

  • Referência
    SAMPI, «Coscuvilhices tipográficas», O graphico: orgão official da União das Artes Gráphicas, n.º 10, de 1 de maio de 1907, p. 4.
Assunto

Crónica humorística criticando o funcionamento da Fundição de Tipos da Imprensa Nacional.

Ficha

«(Continuado do n.º 9)
O pequeno veio dar-me as boas noites e sentou-se ao meu lado.

— Que tens? Perguntei eu cortando uma mortalha e fazendo um cigarro.
— Não tenho nada.
— Parece que vens zangado!… O teu mestre ralhou contigo?
— Não senhor, é outra coisa.
Risquei um fósforo na caixa e acendi o pontífice.
— Então o que foi, diz!…
— Ora o que foi!… Foi que fui já seis vezes à Nacional a buscar quatro linhas de ás agudos de corpo 10-3 red. c. b., e ainda não estão prontos!
— Talvez não tenham fundidos, isso acontece muitas vezes.
— Qual história!… É mas é que não estão para se ralar!… Aquilo são uns sornas…
— Não é tanto assim! Julgas que os homens estão ali só para te servirem a ti, ou lá ao teu patrão?! Há outras casas que também desejam ser servidas.
— Pois sim, mas para se arranjarem quatro linhas d’uma sorte qualquer, parece-me não ser preciso tanto tempo! Olhe que já lá vou para as buscar, há duas semanas.
— É que não têm fundidas, já te disse.
— O pai deve saber disso melhor do que eu, mas sempre lhe quero dizer, que para aviarem qualquer requisição, levam tempos infinitos, e é raro ir lá uma pessoa para buscar qualquer coisa, e que a traga logo. O cliché é sempre o mesmo: ‘venha cá para a semana’!
— Tem pouca gente para o movimento, aquele armazém de tipos.
— Pois se têm pouca gente, porque não requisitam mais?
— Ora, ora!… Tu sabes lá quantas vezes o fiel tem requisitado gente!…
— Então porque não o atendem?
— Sei lá!…
— Naturalmente porque quem superintende naquilo julga que os que lá estão chegam de sobejo para o movimento do balcão e fazer apartados!…
— Talvez seja isso, e talvez seja também por não ter gente.
— Ora esse! Então não tem lá tanto compositor competente para vir para o armazém?…
— Mas não são os compositores que servem ali, julgo que são só os fundidores.
— Oh!… Os fundidores são mais competentes!… Belo!… Isso é que eu não sabia!… Ora diga-me: não será isso uma questão de apadrinhados?!
— Talvez… não sei, mas ainda hei de saber.
— Sim, porque não me parece que os fundidores tenham mais habilitações que os compositores, para exercer o lugar.
— Olha que no armazém, tem um ou dois compositores.
— Isso naturalmente foi por engano, para não dar nas vistas.
— Eu te digo: como o armazém é uma dependência da fundição, será talvez esse o motivo de quererem só fundidores no armazém.
— Pois sim, mas também como na fundição não há senão velhada, parece-me que seria mais conveniente requisitar-se dos compositores algum que fosse preciso para o lugar, pois assim já não pareceria o armazém de tipos da Nacional, uma dependência de Runa.
— Ora isso também é dizer mal!… No armazém não está velhada.
— Não está agora!… Mas se vier reforço da fundição… o pai verá entrar em ensaios o coro do Fausto…
— Diz-me lá então, quando te dão as sortes?
— Disseram-me que para ‘a semana’, terça ou quarta feira, o costume.
— É o que te digo, não têm fundido e custa a montar a máquina para fazer uma sorte. Quase não vale a pena.
— Sim, também não sei para que valha a pena ter fundição!… Tudo o que se procura não há fundido!… Parecem-se muito com os barbeiros… nunca têm obra feita…
— Lá o haver há!… Agora o que não há… é o que falta…
— Já percebo… falta só não faltar nada, para estar tudo completo…
— Pois, é isso mesmo, e vê se me deixas.
— Em todo o caso estou na minha… o que há mais falta, é de… administração, não acha?
— Talvez tenhas razão.
— Se quem estivesse à testa d’um estabelecimento daquela ordem, percebesse alguma coisa daquilo… outro galo cantaria…
— Ou alvenaria, não te parece… ser melhor pedra?
— Sim, sim! À pedra e à pedrada é que eu me satisfazia… no entanto cá fico com a pedra no sapato.»