Referência

Anais da Câmara dos Pares do Reino, n.º 74, Sessão de 16 de junho de 1903, pp. 877-879.

Resumo

Sebastião Baracho refere-se à questão da ortografia seguida na Imprensa Nacional:

«O Orador: — A portaria de 20 de setembro de 1897, promulgada pelo Sr. José Luciano de Castro, é uma portaria de princípios salutares.»
[…]
«A propaganda dela começou a alastrar por tal forma no país, querendo estabelecer processos novos, não só no latim, mas também no português, que deu em resultados a portaria do Sr. José Luciano de Castro, que ele, orador, lerá à Câmara, porque encerra boa e sã doutrina. É deste teor:»
«‘Constando que por meio dos livros e textos destinados ao ensino se procura nalguns estabelecimentos de instrução pública introduzir e impor arbitrariamente, sem consulta nem autorização competente, sistemas ou reformas de ortografia e até de prosódia portuguesa e latina, e que independentemente das razões doutrinárias que possam fundamentar tais inovações, a própria carência de regular verificação e adoção delas, e os processos por que pretendem fazer-se adotar, podem produzir, e estão produzindo, graves perturbações e embaraços à regularidade e até à boa disciplina académica: há por bem Sua Majestade El-Rei mandar declarar ao reitor da Universidade de Coimbra e aos diretores das demais escolas superiores, bem como aos reitores dos liceus e comissários de estudos, que não podem ser permitidas e devem ser coibidas tais inovações ou reformas no ensino oficial, sem prévio exame, consulta ou autorização das estações competentes, que o Governo se reserva ouvir, quando e como tenha por conveniente.’»
«‘Outrossim manda o mesmo Augusto Senhor declarar ao administrador da Imprensa Nacional e aos chefes das demais oficinas tipográficas do Estado que a composição de quaisquer livros ou textos em português ou latim, que nessas oficinas se fizer com destino ao ensino público, devem conservar e manter a ortografia usual, com inteira exclusão da de qualquer sistema não regularmente adotado e reconhecido.’»
«Como se mantém a letra expressa da portaria, na Imprensa Nacional, todos nós sabemos.»
«O Sr. Frederico Laranjo: — Apoiado.»
«O Orador: — E essa letra expressa da portaria devia ser mantida. É o que se deduz do documento originário da secretaria do Reino e que há pouco recebeu da mesa, e é concebido nestes termos:»
«‘Não existe correspondência alguma entre esta Secretaria de Estado e a Administração da Imprensa Nacional de Lisboa relativa aos assuntos mencionados no aludido requerimento do Digno Par Sebastião Baracho; mas, havendo-se S. Ex.ª o Sr. Ministro dos Negócios do Reino, por despacho de 13 de maio de 1902, conformado com o parecer emitido pelo Conselho Superior de Instrução Pública em 10 de abril do mesmo ano, acerca da ortografia usada na Imprensa Nacional, foram a notícia de tal despacho e o referido parecer publicados no volume 10.º do Boletim da Direção Geral da Instrução Pública, fascículos ı-v, pag. 236.’»
«Conforme se observa, a Secretaria do Reino não pôs oficialmente ao par [sic] do que ocorria a Imprensa Nacional! É inacreditável.»
«Mas o certo é que, quando apareceu a público o Boletim, nada foi indicado à Imprensa Nacional, que devia estar sob a vigência da portaria do Sr. José Luciano de Castro e nela devia continuar, perante a omissão que fica registada.»
«A perturbação resultante da anarquia existente tem sido de tal ordem que o Ministério da Guerra teve de tomar as providências com respeito ao assunto, e impor com energia à Imprensa a obrigação de compor os documentos respeitantes àquele Ministério pela ortografia usual. Dá-se um caso curioso: na ordem do Exército que é distribuída aos corpos aparece a ortografia usual; e, quando a composição passa para o Diário do Governo, é ela, essa ortografia, substituída pela que ele, orador, não chamará arte nova, mas positivamente extravagante, — que outra adjetivação não merece.»
«Ele, orador, regista também com prazer que recentemente os nossos Anais são compostos na linguagem devida.»
«Sabe que a mesa desta casa fez sentir à Imprensa que se devia amoldar aos preceitos da Câmara, e que foram tomadas as adequadas providências para que se continue este sistema.»
«Julga de justiça felicitar a mesa por se ter manifestado nesse sentido.»
«A linguagem pátria é uma das afirmações da existência do país. Não se pode estar a modificá-la, nem a torná-la bastarda, por mero capricho ou simples caturrice, ou teimosia.»
«Mas a verdade é que a portaria do Sr. José Luciano evitava todos estes desmandos, e certo é igualmente que a Imprensa não obteve do Ministério do Reino autorização escrita para se lançar na ditadura ortográfica em que se aventurou.»
«Mas os maus exemplos frutificam e alastram.»
«No ano passado, por mais de uma vez chamou a atenção do Sr. Presidente do Conselho para estes desmandamentos. S. Ex.ª por fim assegurou (e cumpriu o que prometeu) que ia sujeitar o assunto à apreciação do Conselho Superior de Instrução Pública. Ele, orador, tem presente esse parecer, que diz:»
«‘Em sessão de 18 de fevereiro último, realizada na Câmara dos Dignos Pares, referiu-se o Sr. Sebastião Baracho à questão da ortografia oficial.’»
«‘Recordou S. Ex.ª a portaria de 20 de setembro de 1887, que determinava não poderem ser permitidas reformas de ortografia e até de prosódia portuguesa e latina sem autorização das estações competentes, e pediu providências no sentido de ser continuada a publicação do Dicionário da Academia e no de ser mantida na íntegra a doutrina do diploma acima citado, o qual, conforme o mesmo Digno Par disse, caíra em desuso.’»
«‘Terminou S. Ex.ª as suas considerações, ponderando a necessidade de ser promulgada qualquer providência que ponha termo a um estado de coisas que considera atentatório contra a nossa belíssima língua, enquanto não se trata de concluir o referido dicionário.’»
«‘O Ex.mo Ministro do Reino, tendo consultado o Conselho Superior de Instrução Pública sobre o assunto, conformou-se, por despacho de 13 de maio, com o seguinte parecer daquela douta corporação.’»
«A Câmara reconhece, naturalmente, que ele, orador, não pretendia que ficássemos estacionários na língua pátria, porque não se pode parar em assunto algum da vida humana. Mas desejava que se fizesse a reforma da ortografia pautando-a pelo parecer dos competentes. Nesta questão, a competência e idoneidade residem na Academia Real das Ciências, a quem está afeta a elaboração do dicionário.»
«O mau exemplo da Imprensa Nacional fez com que aparecessem outros reformadores linguísticos, cuja responsabilidade em confundir e emaranhar a nossa bela língua é manifesta.»
«Mas afirma ainda o parecer do Conselho Superior de Instrução Pública:»
«‘Senhor: — Determinou Vossa Majestade que fossem submetidos ao exame e parecer do Conselho Superior de Instrução Pública os seguintes quesitos:’»
«‘1.º Se era verdadeiramente portuguesa a ortografia portuguesa anteriormente usada na Imprensa Nacional de Lisboa;’»
«‘2.º Se é igualmente portuguesa a ortografia atualmente usada naquela Imprensa;’»
«‘3.º Se convém manter a ortografia atualmente usada, ou restituir a ortografia anterior, até que definitivamente se assente na ortografia que deve considerar como preferível para o ensino da língua oficial;’»
«‘4.º Havendo modificações a fazer quais devem ser.’»
«‘Veio tal determinação desacompanhada de toda a informação oficial relativa à natureza e caráter dos sistemas ortográficos a que se referem os dois primeiros e mais importantes quesitos. Mas, ao tratar de obter oficiosamente indicações a tal respeito por forma que se não protraísse com aliás precisas instâncias a resposta que importava dar, foi o Conselho informado:’»
«‘Que a ortografia anteriormente usada na Imprensa Nacional era a, em geral, seguida nos dicionários existentes e mais particularmente, ao que parece, a que adotou e ensina e que corre com o nome do conhecido e justamente apreciado dicionarista Morais Silva em qualquer das suas repetidas edições;’»
«‘Que em tal ortografia foram agora introduzidas tão somente as poucas e leves modificações que constam do curto rol junto.’»
«Este rol tem muito poucos vocábulos e, entre eles, não há um único nome próprio. Todavia, a Imprensa Nacional esmera-se em deturpar, a seu talante, os nomes próprios. Ao Sr. Presidente do Conselho é respeitado o ph de Rodolpho; mas há outros Rodolphos desprotegidos que a Imprensa Nacional entende que não têm categoria senão para um f.»
«Quem faz valer por forma persuasiva o direito que tem de usar o seu nome como entende, é atendido; mas quem não está à altura de fazer valer esse direito, é vítima de fantasia — para não lhe dar outra designação — da Imprensa Nacional.»
«A Ordem do Exército é, repete, impressa com a ortografia usual, e os nossos Anais também; contudo, em outros documentos, a Imprensa Nacional continua a desrespeitar o parecer do Conselho Superior de Instrução Pública.»
«Se o Sr. Presidente do Conselho quer pôr termo a este estado anárquico, como ele, orador, quer crer, tem que tomar providências.»
«Não fará a leitura de todo o parecer do Conselho Superior de Instrução Pública. Põe-o [sic], porém, à disposição dos Dignos Pares que queiram compulsá-lo, e prosseguirá destacando dele o que se lhe afigura mais interessante.»
«Assim, sobre a palavra ‘poder’ que, segundo a ortografia da Imprensa Nacional, é escrita com ‘u’, diz o parecer:»
«‘‘Poder. O uso geral e a etimologia querem o ‘o’. Só excessivo respeito para ortografia fonética explicará esta grafia.’’»
«O douto Conselho, apesar de estar cheio de indulgência perante os ataques da Imprensa contra a correção da língua, não pôde deixar de condenar o poder com ‘u’.»
«Nas restantes conclusões, expressa-se o Conselho por este modo:»
«‘De tudo que fica dito é evidente que se algum defeito se pode atribuir a tais modificações é versarem sobre pontos secundários, é serem de tão breve alcance e número. Não se compreende muito bem a preferência dada para a reforma que se fez, aos pontos que ficam examinados, sobre outros que a não pediam menos.’»
«‘Mas é também manifesto que, com exceção apenas de uma, todas as mudanças agora introduzidas se explicam e até alguma vez se justificam por algum dos princípios que fundamentam a ortografia de uma língua: a etimologia, a pronúncia, a história sancionada pelo uso.’»
«‘Não haveria urgência em efetuar as mudanças que se introduziram. Nada aconselhava que se realizassem de preferência a outras que se omitiram; mas também não existe razão para que, uma vez introduzidas e modificadas, se desfaçam e anulem. A única que se não explica senão por um respeito à pronúncia que se não justifica seriamente, pode ser, é provável que seja, mero lapso.’»
«‘Não se compreende, pois, salvo neste ponto, o regresso ao anteriormente em uso que não era nuns casos mais, que será em outros menos, para ser recomendado e aceite.’»
«‘Ficam por esta forma respondidos os dois últimos quesitos.’»
«‘Há todavia um ponto, ao qual, embora se não inclua nos termos da consulta que lhe foi presente, entende o Conselho dever acudir com o seu parecer, por vivamente o estar pedindo a defesa dos interesses que com tal consulta se procurou acautelar.’»
«‘Fecha o rol das modificações de que o Conselho se tem ocupado a promessa ou declaração de que se está preparando um vocabulário que deverá servir de guia, decerto permanente, aos compositores e revisores da Imprensa Nacional.’»
«‘É sabido que a Academia Real das Ciências se empenha desde muito na feitura de um dicionário completo da língua portuguesa.’»
«‘É sabido também que se discute neste momento, nas sessões da sua 2.ª classe, à qual mais particularmente incumbem tais assuntos, qual a ortografia que, no dicionário que prepara, mais conveniente parece que se adote.’»
«‘Parece, pois, ao Conselho, que para o bom resultado neste assunto, que particularmente intende com a língua, o que importa o mesmo que dizer com a vida da nação, não é de modo algum de aconselhar que, a par da Academia Real das Ciências, outro instituto oficial esteja discutindo tais materiais, para nelas chegar a resultados definitivos e práticos.’»
«‘Julga, pois, da máxima conveniência que superiormente se recomende à Imprensa Nacional, por intermédio da sua ilustrada administração, que nestas condições se abstenha do propósito que acusa e que, mantendo provisoriamente a ortografia usada em suas publicações, não adote disposições definitivas a tal respeito, enquanto pende nas discussões da Academia a solução do problema ortográfico português. Parece ao Conselho que a ortografia que entenda a Academia dever adotar é a única que importará que a Imprensa Nacional, como instituto oficial que é, adote e use.’»
«Prosseguindo nas reflexões que lhe restam a formular sobre a Imprensa Nacional, pede providências ao Sr. Presidente do Conselho para que acabe com o estado anormal existente (Apoiados) e para que faça saber à Imprensa que não está autorizada a adulterar os nomes próprios.»
«Nestas circunstâncias, aguarde-se o resultado dos trabalhos da Academia, os quais deseja ver adiantados.»
«Ele, orador, regozija-se por ter tomado a iniciativa nesta questão e por, ter sido atendido em parte, pelo Sr. Presidente do Conselho, no ano passado.»
«A situação criada na Imprensa Nacional com a sua ortografia dá em resultado muitos prejuízos para os pobres compositores, que antigamente compunha e emendavam apenas os erros chamados de caixa, e agora são forçados a fazer novas impressões, — com grave prejuízo dos seus interesses, — como resultante dos devaneios dos dirigentes dali.»
«Em tais condições, ele, orador, é informado de que muitos deles, que venciam por semana 6$000 reis, hoje cobram apenas 5$000 reis.»
«Chama também a atenção do Sr. Presidente do Conselho para estas considerações, porque nelas se revela o mau [sic] estar de empregados humildes, cuja melhoria de vencimentos em nada afeta o erário. Basta para isso que se ponha ponto de vez na ortografia da Imprensa, e que desapareça a obstinação indesculpável dos anárquicos propagandistas que a divulgam. Todos com isso lucrarão.»