Vulto cimeiro do Renascimento, Francisco de Sá de Miranda iniciou uma profunda renovação literária em Portugal: introduziu os versos grandes do decassílabo (que ficariam conhecidos como a «medida nova», em oposição à «medida velha», a das redondilhas), novas formas (sonetos, tercetos e oitavas) e também novas modalidades líricas (canções, cartas, éclogas e elegias, mas nunca deixou de fazer cantigas, esparsas e vilancetes). Miranda foi mentor dos principais poetas seus contemporâneos e, ao longo dos séculos, nunca deixou de influenciar outros poetas.
Transcreve-se abaixo o texto «Vida do doutor Francisco de Sá de Miranda, colegida de pessoas fidedignas que o conheceram e trataram, e dos livros das gerações deste reino», reproduzido no título Poesia, Francisco de Sá de Miranda, coord. de José Camões e Filipa de Freitas, Imprensa Nacional, dezembro de 2021.
Vida do doutor Francisco de Sá de Miranda, colegida de pessoas fidedignas que o conheceram e trataram, e dos livros das gerações deste reino
Nasceu Francisco de Sá de Miranda na cidade de Coimbra, no ano do senhor de 1495, o mesmo dia em que el rei dom Manoel tomou posse do governo destes reinos. Foi filho de Gonçalo Mendes de Sá e neto de João Gonçalves de Miranda, que viveu junto a Buarcos, e de dona Felipa de Sá, sua molher, que era filha de Rodrigu’Enes de Sá e neta de João Rodrigues de Sá, o primeiro que chamaram das Galés, assaz conhecido em tempos del rei dom João de Boa Memória. Despois das primeiras letras de humanidade, em que foi insigne, estudou leis, mais em obséquio ao gosto del rei dom João o Terceiro, que de novo plantara então a Universidade na sua terra, que por inclinação que tivesse àquela maneira de vida, e, contudo, obedecendo a seu pai, que lha escolhera, continuou nela com felices porgressos e saiu grande letrado, tomou o grau de doutor e leu várias cadeiras daquela faculdade em sua própria pátria. Porém, conhecendo os perigos que o uso desta ciência traz consigo em matéria de julgar, tanto que lhe faltou seu pai não só deixou de todo as escolas, mas enjeitou os lugares do Desembargo, que por muitas vezes lhe foram oferecidos, ficando só consumando‑se no estudo da Filosofia Moral e Estóica, a que sua natureza o inclinava.
E levantando‑lhe ela o pensamento ao desprezo de todas as cousas de cá, quis peregrinar polo mundo, por que no repouso a que determinava recolher‑se o não inquietassem as novas do que não vira; e assi se foi a Itália, visitando primeiro os mais célebres lugares de Espanha. E tendo visto com vagar e curiosidade Roma, Veneza, Nápoles, Milão, Florença e o milhor de Sicília, tornou‑se ao reino e deteve‑se algum tempo na corte del rei dom João o Terceiro, que já havia muito que reinava; e ali co as qualidades de sua pessoa e boas partes que nele concorriam, sem outra algũa ajuda das que costumam levantar ainda os indignos, se fez tamanho lugar que foi, sem controvérsia, se não o maior, um dos mais estimados cortesãos de seu tempo, concorrendo c’os milhores que este reino teve porventura; e isto não só dos companheiros, mas del rei e dos príncipes, e, o que é mais, dos validos, com quem ordinariamente nam adiantam os amigos de antes quebrar que torcer, como ele diz, tomando em desprezo próprio a estimação alhea e sentindo como injúrias particulares a detestação que os judiciosos e discursivos fazem dos vícios em geral.
Mas nam foi isto sempre. O bom acolhimento digo que achou no maior poder, porque ainda que o nosso poeta pudera ser em seu modo maior que a enveja, como Quinto Cúrsio diz que o foi Alexandre no seu, nam quis ela perdoar‑lhe, concitando em seu dano ũa pessoa muito poderosa daquela era, em desprazer de quem se interpretava mal, pola mesma enveja, um lugar da sua égloga «Aleixo». O que sentindo ele, nem querendo declarar‑se milhor nem esperar à vista os efeitos da ira declarada, tendo‑lhe el rei dado ũa comenda do Mestrado de Cristo que chamam as Duas Igrejas, no Arcebispado de Braga, junto à Ponte de Lima, recolheu‑se a ũa quinta que também tinha aí perto, chamada a Tapada, deixando o mimo da corte, a conversação dos amigos, a esperança de maiores mercês assegurada no favor do príncipe dom João, que em muito tenra idade começava a fazer‑lhe grande, e do cardeal dom Henrique que, com mostras de particular afeição, assistia a suas cousas. E estando ali logrando quietamente o fruto de seus estudos e peregrinações, casou com dona Briolanja d’Azevedo, filha de Francisco Machado, senhor da Lousã de Crasto d’Arega e das terras de Entre Homem e Cávado, e de dona Joana d’Azevedo, sua molher, com a qual viveu anos em grande conformidade, sendo ela tão pouco fermosa exteriormente e de tanta idade que quando a pediu a seus irmãos, Manoel Machado e Bernaldim Machado, por ser seu pai já morto, não quiseram eles difirir‑lhe ao casamento sem que primeiro visse bem a noiva. E sendo‑lhe mostrada polos irmãos, disse para ela: «castigai‑me, senhora, com esse bordão, porque vim tam tarde».
Mas parece que como Francisco de Sá viveu em todas as cousas do mundo quasi abstraído do mesmo mundo, que assi foi também nisto, não lhe faltando algum filósofo a quem imitasse, estimando, sobretudo, os dotes d’alma daquela matrona, que foram excelentes, conforme a seu estado, por testemunho de homens daquela comarca, que inda hoje o dão do cuidado que tinha da honra de Deos, do descanso de seu marido, da criação de seus filhos, da doutrina de seus criados e do provimento de sua casa, com que o marido a amava, de maneira que faltando‑lhe ela faltou ele brevemente entre extremos de sentimento, se nam dignos do ânimo de um tam grande filósofo, devidos, polo menos, à estimação que com seu profundo juízo fez daquela perda. Teve dous filhos desta molher de que o primeiro se chamou Gonçalo Mendes de Sá, como seu avô, o qual ainda mui mancebo, mas de tam boa índole e partes, como o ele pinta na elegia que acerca de sua morte respondeu o doutor António Ferreira, mandou a África servir ũa comenda, aonde quasi todos os moços daqueles tempos iam cengir a primeira espada, e chegado de poucos dias a Ceita sucedeu a perda de dom Pedro de Meneses, filho do primeiro conde de Linhares, dom António, que era capitão do lugar onde Gonçalo Mendes também acabou com muitos outros, entre os quais foi dom António de Noronha, sobrinho do capitão, filho do conde dom Francisco, que deu com sua morte ocasião àquela lamentável égloga de Luís de Camões de Umbrano e Frondélio.
Chamou‑se o outro filho Jerónimo de Sá d’Azevedo, o qual casou, despois da morte de seu pai, com dona Maria de Meneses, filha de Francisco da Silva de Meneses, o Galego, irmão inteiro de Diogo de Sousa, que foi pai do conde Rui Mendes de Vasconcelos, que hoje vive, e de dona Lianor de Melo, sua molher, filha de dom Álvaro de Melo, abade que foi de Refoios de Lima, dos quais é filho Francisco de Sá de Meneses, que vive de presente, neto do nosso Francisco de Sá, e o foi também ũa irmã sua que casou com dom Fernando Cores Sotomayor, que vivia em Salvaterra de Galiza o ano de 1593, já viúvo dela, e é rezão que digamos aqui que quando aquele fidalgo casou com esta neta de Francisco de Sá quis que no dote que lhe deram entrasse em um grande preço o livro original de suas poesias, o qual tem e estima como elas merecem, a maior parte das quais ele compôs naquela sua quinta da Tapada em estilo lírico e pastoril e todas, ou as mais delas, sobre casos particulares que sucederam na corte em seu tempo, introduzindo pessoas conhecidas daqueles que então viviam, de que ainda temos algũas tradições e vestígios derivados a nós dos contemporâneos que o venceram em dias. E se houvera algum que fizera ũa anotação disto, porventura que fora bem agradável história, porque nam ficáramos só pendentes cada um de seu juízo na especulação destas causas, ainda que o engenho e artefício poético com que as ele dispôs é bastante matéria pera ocupar e deleitar a toda a curiosidade, porque de maneira se aproveitou da doutrina e preceitos de todos os filósofos e poetas que se concorrera com eles em um mesmo tempo mal se puderam determinar os homens que leram as obras de uns e outros quem imitara a quem, que assi levantou Francisco de Sá e sobiu em muitos lugares as cousas daqueles, que milhor se pode afirmar que são nele próprias que imitadas.
Tratou antes de conceitos e substâncias que de termos vãos e pomposos, ‘spanto de principiantes redículos e inúteis aos que milhor entendem, guardando, todavia, com tamanho rigor as regras da arte que os que atentamente o passarem não lhes ficará necessidade de ler em as Poéticas de Aristóteles e Horácio, que ele parece não largava da mão.
Foi o primeiro que compôs versos grandes neste reino, bastante desculpa das miudezas que se tacham em alguns seus desta medida pera aqueles homens, ao menos, que, atendendo ao que se diz, não curam muito do modo; e também o é não pequena pera os mui observantes da língua castelhana, se no que compôs nela acharem que caluniar em rezão de palavras, haver escrito em tempo em que os portugueses se nam entendiam tam bem co ela como com eles. E as línguas vulgares que nam pendem de preceitos coarctadamente nunca se sabem bem senam co uso contino e trato civil, e sempre os estrangeiros que as nam tiverem praticado muito falaram e escreveram com grande perigo nelas de maus acentos e piores significações, de que pudéramos apontar exemplos se nam ficaram mais em escândalo de alguns que em utilidade de nosso intento, que há mister menos; porque na substância e madureza de Francisco de Sá são isto acidentes de nenhũa importância, o qual não somente foi inculpável na gravidade das sentenças, na agudeza dos conceitos, na propriedade dos termos, na moralidade das figuras, na imitação dos poetas, na observação das regras, se não inimitável também na pureza com que falou em matérias amorosas, que é de maneira que até as duas comédias que fez em prosa, que por rezão do estilo cómico são mais licenciosas, o cardeal dom Anrique, que despois foi rei destes reinos, tam pio, tam zelador da fé e dos bons costumes, reformador das religiões, legado ad lettere, inquisidor‑mor, não só lhas mandou pedir pera as fazer, como fez, representar diante de si por pessoas que despois foram gravíssimos ministros, a que se achou presente, entre outros, dom Jorge de Ataíde, bispo de Viseu, meritíssimo abade d’Alcobaça, do Conselho do Estado e capelão‑mor del rei, se não pouco despois de Francisco de Sá morto, se elas nam perdessem as fez imprimir ambas em Coimbra, na forma em que andam e as tinha e lia muitas vezes.
Foi tam particular mestre do trato da nossa corte, do nosso modo de conversar, dos termos com que entre nós se declaram os que milhor sabem declarar‑se, que passando há tantos anos ainda hoje os bem lidos nele se valem de sua doutrina como de Apotemas argutíssimos em toda a variedade de matérias tocantes a estilos de corte e costumes políticos, e ainda os pregadores nos púlpitos. Morreu‑lhe sua molher o ano de 1555 com o que ele começou a morrer logo também pera todas as cousas de seu gosto e antigos exercícios, tanto que vivendo ainda três anos despois dela nam se acha que compusesse mais que um soneto que fez à sua morte, que começa «Aquele spírito já tam bem pagado», e afirmam pessoas que o conheceram que nunca mais saiu de ũa casa senam pera ouvir os ofícios divinos, nem aparou a barba, nem cortou as unhas, nem respondeu a carta que lhe alguém escrevesse, até que acabou de todo.
Foi homem grosso de corpo, de meã estatura, muito alvo de mãos e rostro, com pouca cor nele, o cabelo preto e corredio, a barba muito povoada e de seu natural crecida, os olhos verdes bem assombrados, mas com algũa demasia grandes, o nariz comprido e com cavalo, grave na pessoa, melancólico na aparência, mas fácil e humano na conversação, engraçado nela, com bom tom de fala, e menos parco em falar que em rir, e porque pode servir pera melhor inteligência de algũas figuras, termos e sentenças destes seus papéis o conhecimento de seus particulares exercícios, direi aqui o que pude alcançar deles. Era inclinado à caça dos lobos e exercitava muitas vezes, indo a ela foteado todo e à gineta, jogava o taboleiro e nenhum outro jogo, donde parece que tirou a metáfora de que usa nas églogas de Basto e na de Nemoroso e alguns outros lugares como (scilicet sacra miscere profanis) fez o profeta Amos, que do exercício do campo em que se criou tomou os termos com que escreveu a sua profecia, tangia violas d’arco e era dado à música, de maneira que com nam ser mui rico tinha em sua casa mestres dela custosos que ensinavam a seu filho Jerónimo de Sá, de quem se diz que foi extremado naquela arte, e contava Diogo Bernardes, a quem seguimos em muita parte disto, que quando o ia a ver, vivendo em Ponte de Lima, pátria sua, lhe mandava tanger o filho em diversos instrumentos e o reprendia algũa vez de algum descuido.
Foi sóbrio e austero consigo e largo com algum excesso c’os hóspedes, que indiferentemente agasalhava com gosto particular, costumando a dizer que o livravam de si o tempo em que os conversava, e com rezão, porque se conta dele que estando sem gente de cumprimento, e ainda com ela, se suspendia algũas vezes, e mui de ordinário derramava lágrimas sem o sentir, porque quando lhe acontecia à vista d’alguém, nem as enxugava, nem torcia o rostro, nem deixava de continuar no que ia falando, parece que como outro Heráclito com a mágoa do que lhe revelava o spírito dos infortúnios da sua terra, de que nestes papéis seus se vê quam grandemente se temia.
Soube tanto da língua grega que lia a Homero nela e acotava de sua mão em grego também. E no ano de 1584 tinha este livro que fora seu Gonçalo da Fonseca de Castro, morador em Lamego, fidalgo curioso e bem instruído na língua latina, ao qual e a Gomes Machado d’Azevedo, que ainda hoje vive na comarca d’Entre Douro e Minho, e vivia então em Vila Real, sobrinho da molher de Francisco de Sá, filho de Bernaldim Machado, seu irmão, e aos doutores Jerónimo Pereira de Sá e Anrique de Sousa, desembargadores que foram do Paço, pouco há passados, estreitos parentes seus, e ao senhor dom Manoel de Portugal, digno, por seu admirável spírito, deste e doutros maiores títulos, com os mais que nomeamos, seguimos nesta relação. E sobre tudo o que mais soube Francisco de Sá foi ser pio e católico cristão, devotíssimo, em particular, da Virgem Nossa Senhora, em cujo louvor compôs as duas canções que nestes papéis se vem em seu nome. Morreu, com todos os sacramentos, de idade de 63 anos, no de nosso salvador de 1558. Está enterrado na igreja de São Martinho de Carrazedo, Arcebispado de Braga, com sua molher e cunhados, na capela de Santa Margarida.
E Martim Gonçalves da Câmara, varão gravíssimo, filho do capitão da Ilha da Madeira, do Conselho do Estado del rei, grande valido de dom Sebastião o Primeiro, e mui estimado de sua majestade, que Deos guarde, havendo resistido às dignidades eclesiásticas que lhe foram oferecidas, e retirando‑se no fim da idade a viver privadamente c’os padres da Companhia em São Roque de Lisboa, não lhe pareceu que encontrava os intentos com que se ali fora, nem as calidades e circunstâncias que nele concorriam em tratar da honra que se devia à memória de tam grande homem, e assi se ocupou os últimos meses de sua vida em lhe mandar lá melhorar a sepultura e pôr este epitáfio em língua latina, pola qual obra será sempre tam louvado dos bons spíritos, como é rezão que o seja de todos os homens polo zelo da justiça e bem público que mostrou em todos os estados e fortunas, etc.
EPITAPHIVM FRANCISCI DE SA DE MIRANDA
Rustica que fuerat solis vix cognita syluis
Aulica Miranda musa canente fuit
Maturosque iocos et ludrica seria ludens
Diuina humanum miscuit arte Melos.
Cum posset gladio transcendere nomen auorum
Maluit arguti militiam calami
Post habuit fasces, et inertis laudis honores
Ac docuit pletro pro meruisse decus
Omnia Mirandus Mirandus puluere, in ipso est
Pulvére in hoc patriae gloria escripta manet.
As obras do doutor Francisco de Sá de Miranda, Vicente Álvares, 1614