Vinte Horas de Liteira, de Camilo Castelo Branco, é o mais recente título da coleção «Biblioteca Fundamental da Literatura Portuguesa». Publicado pela primeira vez em 1864 é também um dos títulos mais curiosos de Camilo Castelo Branco, quer pela sua estrutura quer pelo caráter metaliterário que tal estrutura proporcionou a Camilo desenvolver. É uma espécie de narrativa de viagem à moda camiliana, onde o autor reflete sobre o ofício literário, a própria literatura, a narrativa e os diversos aspetos da sua composição. No trajeto balanceado de uma liteira, de uma aldeia perdida no Marão até ao Porto, Camilo encena a cumplicidade existente entre o movimento da viagem e o ato de contar histórias.
Vinte Horas de Liteira , publicado pela Imprensa Nacional em 2019, conta com Introdução e Nota Bibliográfica de Maria Fernanda de Abreu, professora aposentada da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (Universidade Nova de Lisboa) e investigadora integrada do Centro de História d’Aquém e d’Além-Mar. A coordenação literária da coleção «Biblioteca Fundamental da Literatura Portuguesa» é do académico de Coimbra Carlos Reis.
O progresso é uma voragem!
A liteira já se debate nas fauces do monstro. Vai cair a fatal hora! Daqui a pouco, a liteira, desaparecerá da face da Europa.
O derradeiro refúgio da anciã era Portugal. Nem aqui a deixaram neste museu de antigualhas! Nem aqui! A pobrezinha, a decrépita, coberta do pó e suor de sete séculos, tirita estarrecida de pavor, escutando o hórrido fremir do wagon, que bate as crepitantes asas de infernal hipogrifo.
Ao passo que o vapor talava os plainos, galgava ela, espavorida, os desfiladeiros para esconder-se. Mas o camartelo e o rodo escalaram o agro e penhascoso das serras, e a liteira, acossada pelo char-à-bancs, sumiu-se ainda nas veredas pedregosas, e acoitou-se à sombra do solar alcantilado e inacessível ao rodar da sege.
É aí que a coeva do Portugal das crónicas se estorce e vasqueja no último alento.
A terra de D. João I e Nuno Álvares agoniza com a liteira de João das Regras e Pedro Ossem!
Volvidos doze anos, a liteira de alquilaria será uma tradição, nem sequer perpetuada na gravura. No recanto de alguma cavalariça de palacete provincial, apodrecerão ainda as relíquias da liteira fidalga; mas esta não é a liteira posta em holocausto ao macadame, à diligência, à mala posta, e ao carril. A liteira sacrificada, a liteira dos dois machos pujantes e das cinquenta campainhas estrídulas, essa é a que se vai de uma assentada, desfeita à serra e enxó para remendos de ignóbeis carrinhos e carroções. Esta é que é a liteira das minhas saudades, porque se embalaram nela as minhas primeiras peregrinações; porque, dos postigos de uma, vi eu, fora das cidades, os primeiros prados e bosques e serras empinadas; porque o tilintar das suas campainhas me alegrava o ânimo, quando a toada festiva me interrompia as cogitações da tarde por essas estradas do Minho e Trás-os-Montes; porque finalmente foi numa liteira que eu encontrei o livro, que o leitor, com a sua paciente benevolência, vai folhear.
in Vinte Horas de Liteira
Camilo Castelo Branco (1825-1890) é uma das mais ricas e complexas personalidades da nossa história literária. Em conjugação com uma biografia pessoal recheada de incidentes que, por vezes, parecem saídos dos seus relatos, Camilo iniciou o seu trajeto literário no quadro do romantismo, em meados do século XIX. A partir daí, veio a ser um dos primeiros escritores que viveram da literatura, o que frequentemente lhe exigiu reajustamentos, em função do evoluir das modas literárias do tempo. Do mesmo modo, a produção camiliana é muito abundante e diversificada, embora com predomínio do romance e da novela.