Nos vinte anos que tenho de editor, houve uma santíssima trindade de editores alternativó-comerciais que se vinha estabelecendo e estabeleceu. Poderemos considerar este adjectivo como adequado a quem promove uma edição alternativa – muitas vezes literária, muitas vezes com o critério da “qualidade” do texto bem à frente do da possibilidade de venda – mas que ao mesmo tempo tem uma estrutura já profissional e que, por isso mesmo, tende a ter necessidades comerciais para os livros editados.
Falo da Assírio & Alvim, primeiro com Manuel Hermínio Monteiro e, depois da morte deste, com Manuel Rosa; da Livros Cotovia, primeiro com André Jorge e, depois da morte desde, com Fernanda Mira de Barros; e da Relógio D’Água, sempre sob a orientação de Francisco Vale.
Estive uma única vez com André Jorge, tentando perceber a sua sensibilidade para uma co-edição entre as Quasi e a Cotovia para o Teatro Completo de Beckett. Tinha adquirido os direitos de tudo menos do Godot, que continuavam, com a ótima tradução de José Maria Vieira Mendes, na Cotovia. Escusado será dizer que André Jorge não quis qualquer contacto com as Quasi, que nitidamente não considerava. O encerramento da editora fez cair o projeto que tinha de editar o “Teatro”, mesmo sem Godot. Fernanda Mira Barros não conheço de todo.
Com o Hermínio estive também uma ou duas vezes, como que visitando um mito. Lembro-me de lhe falar dos textos que ele ia escrevendo para a LER, pensando publicá-los nas Quasi. A sua morte fê-los sair na coleção do Vasco Rosa n’ O Independente. Manuel Rosa é um amigo de que gosto mesmo muito. Tive pena do destino da Assírio – quem não teve? – mas a reconfiguração na Porto Editora não diminuiu a sua qualidade e importância. E o Manel faz agora a Documenta e o Sistema Solar com a mesma sapiência.
Vale vi uma ou duas vezes ao longe, na Feira do Livro de Lisboa. Terei trocado uns argumentos online, julgo que por causa do texto que escrevi para a LER sobre um dos livros de Joaquim Manuel Magalhães. Tenho quase a certeza que não considera o meu trabalho. É o editor português com o melhor catálogo de literatura estrangeira.
Tem feito, nos últimos anos, uma inflexão que não posso deixar de saudar. Ter o melhor catálogo não é sinónimo de ter as melhores edições (e uma edição não é só a qualidade da tradução, por exemplo). A Relógio primava por algo que me deixava irritado, confesso: a corrida de obstáculos. Para lermos livros fabulosos, clássicos do passado ou do presente, tínhamos de ultrapassar umas capas que deviam pouco à estética mais empática para o leitor e uma paginação com um tipo de letra e um design geral que também não ajudava muito. Felizmente, depois de uma tentativa que abortou há uns anos (onde chegou a editar com uma capa lindíssima a Mrs. Dalloway e até o seu próprio livro), voltou a editar com um design que possibilita que alguém (será isto um crime?) compre um bom livro pela capa.
É isso o que tem feito com Clarice Lispector. Embora algumas delas adquiridas às novas edições brasileiras, outras com uma estética que pode (outro crime?) favorecer as vendas. Nesse sentido, celebro aqui as novas edições de Todas as Crónicas e Todos os Contos, que têm sido minha companhia há vários dias.
Lispector é o que de mais sujo e melhor nos trouxe a literatura brasileira contemporânea. Um cometa que passou rápido, demasiado rápido. Estrangeira no seu país, soube fazer uma literatura brasileira estrangeira também e, também por isso, universal. Às vezes diz-se que o que faz falta à literatura portuguesa ou brasileira é exactamente ser menos portuguesa ou brasileira. Não sei se concordo com isso, mas concordo que a de Lispector ficou a ganhar com esse olhar estrangeiro sobre si mesmo.
Está aí, agora. Nestes dois livros, na própria biografia de Benjamin Moser, também excelentemente editada pela Relógio, e nos livros individuais, com capas muito apelativas.
Espero que Francisco Vale continue. Construiu um catálogo incrível ao longo dos anos e todos os leitores que apreciam literatura de qualidade devem a isso estar agradecidos. Ter conseguido tal coisa com alguns obstáculos – quero crer – que colocava no seu caminho, é mais ainda de louvar. Ou então – e cá estarei para dar a mão à palmatória se a tal me convencerem – a estética das capas mais antigas, digamos, mais despojada de beleza era mesmo vontade do freguês. Eu não sou um intelectual. Mas conheço muitos para quem ler um livro do Tolstoi com uma capa bonita porque comercialmente apelativa é crime de lesa-majestade. Ou de lesa-czar, para que a metáfora fique conforme.
Todos os Contos e Todas as Crónicas de Clarice Lispector
Publicados em Março de 2016 e Dezembro de 2018, respetivamente, pela Relógio D’Água, depois de impressos na Guide.