No episódio de hoje de «A Poesia Dita.» ouve-se «Não Passarão», um poema de Marcus Vinícius Quiroga, inserido no livro Não Viajarei por Nenhuma Espanha, publicado em 2021 na coleção «Comunidades Portuguesas», uma coleção que resulta de uma parceria entre a Imprensa Nacional e o Ministério dos Negócios Estrangeiros.
Não Viajarei por Nenhuma Espanha foi um dos títulos vencedores da 1.ª edição do Prémio Imprensa Nacional/Ferreira de Castro.
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NÃO PASSARÃO
Os que têm medo não passarão.
Os fuzis fascistas não passarão.
Mas Espanha passará
como um panfleto de mão em mão;
como paloma, mas não a paloma
presa na tela de um quadro
com assinatura falsa.
Por avenidas passarão
os carrascos em carro aberto
sob serpentinas e aplausos
(nos porões os inquéritos
da santa inquisição
queimam cigarros
na pele de vagos suspeitos).
Os mortos passarão
em pilha, como na peste,
para serem despejados
nos terrenos baldios da história.
Passarão os urubus,
trazendo no bico a carniça,
os uniformes escuros,
as mãos sujas de polícia.
Não passarão os desejos, os afetos,
as cartas de correspondência.
Passarão os trens repletos de agonia,
com destino supostamente ignorado.
Passarão os jovens alistados,
com os passos ainda trêmulos de sangue.
Passarão os donos das fábricas bélicas
em um carro alegórico,
distribuindo risos e chicletes para a multidão.
Passarão as horas em um relógio imóvel.
Passará o grito de garganta em garganta,
até a inevitável explosão.
Os que sabem a senha passarão
e por ora a senha é a bala
que se aloja no peito dos que dizem não.
A leitura é de Maria Almeida. A música é de «Um Fado» para piano, de Alexandre Rey Colaço.