É em São Martinho de Anta, no distrito de Vila Real, que nasce, a 12 de Agosto de 1907, Adolfo Correia Rocha. Esta pequena vila transmontana, a que regressa sempre que a necessidade de retemperar forças se faz sentir, permanecerá o seu axis mundi:
«S. Martinho de Anta não é um lugar onde, mas um lugar de onde…»;
«(…) é a terra onde nasci e de onde verdadeiramente nunca saí».
Os pais, camponeses pobres, marcaram-no decisivamente, sendo muitas as referências que lhes faz n’A Criação do Mundo e no Diário. No pai, Francisco Correia Rocha, admira a tenacidade, a grandeza de caráter, o sentido de justiça e aquele amor à terra que é sua marca distintiva. Com a mãe, Maria da Conceição Barros, mantém uma relação de afeto e cumplicidade. Dos dois irmãos que teve, José emigrou para o Brasil, onde ficou; já Maria converteu-se numa espécie de matriarca, assumindo, na aldeia natal, a liderança da casa de lavoura, depois da morte dos pais. Com ela manteve o poeta uma relação de estreita cumplicidade:
«Gostávamos um do outro como dois cúmplices de um mistério sagrado, feito de raízes e vínculos. Tudo nela era, como em mim, ligação à terra, às tradições, às origens.»
Depois de fazer a instrução primária na escola de S. Martinho de Anta, Adolfo Rocha vai para o Porto, durante um ano, como criado de servir, tendo, depois, o mesmo destino de todas as crianças menos abonadas da região — o Seminário de Lamego. Aí ingressa, em 1918, ficando apenas um ano. Resulta dessa estada um profundo conhecimento dos textos bíblicos que os títulos das suas obras A Criação do Mundo ou O Outro Livro de Job, entre outros, denunciam. A falta de vocação sacerdotal era manifesta. É assim que, aos 13 anos, em 1920, parte para o Brasil, onde trabalha durante cinco anos na fazenda do tio, no estado de Minas Gerais. Este, que ganhou a vida com grande tenacidade e não menor abnegação, também não o poupa a sacrifícios e, desde capinar café até laçar cobras venenosas ou fazer a escrita da fazenda, tudo decorre a seu cargo.
Esta estada no Brasil proporciona-lhe experiências de vida merecedoras de sistemáticas alusões ao longo da obra. Aí frequenta, em 1924, o Ginásio Leopoldinense e, em 1925, regressa a Portugal, onde vai continuar os estudos, pagos pelo tio como recompensa dos cinco anos de trabalho na Fazenda de Santa Cruz. Conclui o curso dos liceus em três anos e matricula-se na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, que frequenta entre 1928 e 1933, habitando uma república de estudantes — a Estrela do Norte.
Em 1928 publica a sua primeira obra em verso, Ansiedade, que acaba por retirar do mercado e, entre 1929 e 1930, é chamado a colaborar na revista Presença. A passagem por esta revista, ainda que breve, foi determinante na sua formação literária, propiciando‑lhe o contacto com a obra de escritores estrangeiros e despertando-lhe o fascínio pela sétima arte, se bem que a sua independência e o seu antiacademismo o fizessem rapidamente dela dissidir.
Lança-se, então, com Branquinho da Fonseca, na aventura efémera da revista Sinal, e recomeça a sua publicação individual: Rampa, em 1930, e em edições de autor: Pão Ázimo, Tributo e Abismo. Terminado o curso de Medicina, Adolfo Rocha regressa a S. Martinho e exerce, depois, como clínico geral, em Vila Nova de Miranda do Corvo. Em 1934 publica, já com o pseudónimo Miguel Torga, A Terceira Voz. Miguel, como Cervantes e Unamuno, duas referências da cultura ibérica; Torga, como a urze resistente da sua terra transmontana.
O Outro Livro de Job vê a luz em 1936, ano em que, juntamente com Albano Nogueira, funda a revista Manifesto, onde colaboram, entre outros, Vitorino Nemésio, António Madeira, Joaquim Namorado e Fernando Lopes Graça. A publicação termina por problemas com a Censura. Entretanto, em 1937, saem O Primeiro Dia e O Segundo Dia d’A Criação do Mundo e no ano seguinte O Terceiro Dia.
A Criação do Mundo será a ficcionalização do cosmos do seu criador «plasmado em prosa», e enquadrado pela cronologia dos factos políticos, históricos e sociais do Portugal do século passado que o próprio Torga assim legitima:
«Todos nós criamos um mundo à nossa maneira. […] Criamo-lo na consciência, dando a cada acidente, facto ou comportamento a significação intelectual ou afetiva que a nossa mente ou a nossa sensibilidade consentem. E o certo é que há tantos mundos como criaturas. O meu tinha de ser como é, uma torrente de emoções, volições, paixões e intelecções a correr desde a infância à velhice no chão duro de uma realidade proteica.»
Torga, termina, em Coimbra, a especialidade em otorrinolaringologia e começa as suas viagens — por enquanto só pela Europa —, que nunca mais deixaria de fazer, como se estas fossem mais do que um complemento na sua formação de homem e poeta observador da realidade.
Corre o ano de 1939, e fixa residência em Leiria, onde exerce a sua profissão. Não perde, todavia, o contacto com Coimbra, onde se desloca todos os fins de semana. Colabora na Revista de Portugal, dirigida pelo seu amigo Vitorino Nemésio. É em casa deste que conhece a belga Andrée Crabbé, uma ex-aluna do poeta açoriano que se encontrava a frequentar o curso de férias na Universidade de Coimbra. Mais tarde, sua mulher.
Estamos no tempo da Guerra Civil de Espanha e o poeta vive-o amargamente; nela se jogavam ideais geracionais por ele também acalentados; por isso são recorrentes as referências a este triste episódio da humanidade em várias das suas publicações, nomeadamente nos Novos Contos da Montanha e nos Poemas Ibéricos… É também por esta altura que publica O Quarto Dia d’A Criação do Mundo, onde verte amargas reflexões sobre essa guerra fratricida. O livro é apreendido e Miguel Torga preso no Aljube.
A sua detenção é acompanhada pela solidariedade dos seus amigos leirienses. Aí compõe «Ariane», o seu poema mais belo de intervenção e resistência. Posto em liberdade nesse mesmo ano, 1940, casa com Andrée Crabbé.
«Vou tentar ser um marido cumpridor. Mas quero que saibas, enquanto é tempo, que em todas as circunstâncias te troco por um verso.»
Nesse ano ainda publica os contos Bichos e fixa residência em Coimbra, onde vão ser frequentes as tertúlias com intelectuais como Eugénio de Andrade, Ruben A. e Ribeiro Couto. As suas impressões desta cidade, com a qual sempre foi exigente, encontram-se também plasmadas ao longo de toda a obra e, particularmente, no volume Portugal, de 1950.
«Favoravelmente colocada entre Lisboa e o Porto, a primeira, marítima, a segunda, telúrica, uma a puxar para fora e outra a puxar para dentro, ela representa uma neutralidade vigilante, fazendo a osmose do espírito que parte com o corpo que fica. Do espírito que vai, ou deve ir, a todas as aventuras do mundo, e do corpo que tem raízes imutáveis no chão nativo.»
Aberto consultório no Largo da Portagem, n.º 45, aí exerce a sua profissão, escreve e recebe amigos e intelectuais durante mais de cinquenta anos. Frio e austero, o seu local de trabalho possui uma janela com vista sobre a cidade e o Mondego, numa comunhão com o mundo. A ele se dirige, quotidianamente, utilizando os transportes coletivos, não sem antes aproveitar para entrar nas principais livrarias da Baixa. Não contrariando os hábitos geracionais, detém-se pelos cafés em tertúlias com amigos — primeiro na Central e, posteriormente, no Arcádia.
Um dos anos mais férteis da sua produção literária é 1941. Publica Diário I, Terra Firme, Mar e a coletânea de contos Montanha. Desta última, apreendida pela Censura, é feita uma edição em 1955 no Rio de Janeiro com o nome Contos da Montanha, que cautamente circula em Portugal. Neste mesmo ano profere, no Segundo Congresso Transmontano, a conferência «Um Reino Maravilhoso». Um reino que:
«(…) oficialmente vai de Vila Real a Chaves, de Chaves a Bragança, de Bragança a Miranda, de Miranda a Régua. Um mundo! Um nunca acabar de terra grossa, fragosa, bravia, que tanto se levanta a pino num ímpeto de subir ao céu, como se afunda nuns abismos de angústia, não se sabe por que telúrica contrição. Terra-Quente e Terra-Fria. Léguas e léguas de chão raivoso, contorcido, queimado por um sol de fogo ou por um frio de neve. Serras sobrepostas a serras. Montanhas paralelas a montanhas. Nos intervalos, apertados entre os rios de água cristalina, cantantes, a matar a sede de tanta angústia. E de quando em quando, oásis da inquietação que fez tais rugas geológicas, um vale imenso, dum húmus puro, onde a vista descansa da agressão das penedias. Mas novamente o granito protesta. Novamente nos acorda para a força medular de tudo. E são outra vez serras, até perder de vista.»
Miguel Torga continua a publicar, sempre em edições de autor, de aspeto austero e frio, por razões económicas mais dos leitores do que propriamente suas. Em 1946 vê a sua mulher, Andrée Crabbé, por ordem de Oliveira Salazar, ser demitida de professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Envolve-se depois no projeto do lançamento da revista Rebate, abortado pela Censura. Publica por esses anos Vindima, Novos Contos da Montanha e Cântico do Homem que, juntamente com Orfeu Rebelde (de 58), detém os poemas de maior intervenção e resistência.
A paixão pela caça e pelas viagens, muito especialmente em Portugal, de que o livro homónimo dá conta, as idas anuais às termas do Gerês, as peregrinações cíclicas a S. Martinho de Anta são gostos simples deste homem que vive a vida com igual simplicidade. Todavia, não descura as viagens além-fronteiras e, em 1950, faz um périplo de automóvel pela Itália e, em 1953, um cruzeiro pela Grécia e Turquia com Fernando Vale, o médico de Arganil e o amigo de todas as horas. As suas obras começam, então, a ser traduzidas em inglês e as publicações sucedem-se: Pedras Lavradas, Alguns Poemas Ibéricos e mais volumes do Diário.
Em 1954 revisita com a mulher o Brasil, nomeadamente os locais onde passou a sua adolescência. Recusa o prémio comemorativo da morte de Garrett, do Ateneu Comercial do Porto, oferecendo o dinheiro a esta instituição para que invista na publicação de obras de jovens poetas.
Nasce, no ano seguinte, a sua única filha — Clara — e Torga publica o ensaio Traço de União. Vê o Diário VIII ser apreendido pela Censura e o seu nome proposto e apoiado com entusiasmo para o Prémio Nobel da Literatura que nunca chegaria a receber.
Na década de 1960 publicará, entre outros, Câmara Ardente e mais volumes do seu Diário. Note-se que o Diário de Miguel Torga está longe de ser uma feira literária com um palco de exibições eufóricas ou disfóricas. Num total de 16 volumes, publicados ininterruptamente entre 1941 e 1993, constituem o retrato do homem, do escritor e também do seu tempo. Foi logo no 3.º volume que Torga define a sua obra:
«Um diário não é necessariamente um perpétuo mea culpa. Pode ser um simples memento, um exercício espiritual, um caderno de apontamentos, tudo o que se queira. […] Pela minha parte, não sou delator, nem meu, nem dos outros. […] Da minha pena de artista quero que saia apenas aquela intimidade que me parece ser suficiente para matar a justa curiosidade do leitor devotado, e me deixe ao abrigo de todas as bisbilhotices doentias.»
Sempre vigiado pela PIDE, Miguel Torga visita Angola e Moçambique em 1973. Começa, com a revolução de 25 de Abril de 1974, a participar, não sem um certo ceticismo, em manifestações e comícios ligados ao Partido Socialista, onde discursa, ainda que assumindo-se sempre como independente — a mesma independência que pauta a sua criação literária.
Passados que são 35 anos da publicação de O Quarto Dia d’A Criação do Mundo, surge O Quinto Dia, que privilegia a sua experiência na prisão. Enfim, parece que Torga é final e abertamente reconhecido, também pelos prémios que lhe são atribuídos. E são muitos. Tantos que deles não podemos dar conta aqui. Entre eles, o maior galardão em Língua Portuguesa: o Prémio Camões, em 1989. A sua obra conhece também várias adaptações para cinema, teatro e televisão. Promovem-se congressos internacionais em sua homenagem.
Paralelamente, Miguel Torga continua sempre a escrever e a publicar: Fogo Preso, O Sexto Dia e mais Diários. E continua também a viajar: ao Gerês e a S. Martinho de Anta, ao México, aos Açores e a Macau, onde profere a celebre conferência «Camões».
Familiarizado mas não conformado com a doença que há vários anos o consome, Miguel Torga morre em Coimbra a 17 de janeiro de 1995, sendo sepultado no cemitério de S. Martinho de Anta:
«(…) terra onde têm raízes, os versos.»
A obra de Miguel Torga, traduzida em várias línguas, configura, antes de mais, uma coerência inabalável. Através de um estilo desafetado e despojado, ela assume-se como um macro discurso:
«(…) defensor incansável do amor, da verdade e da liberdade, a tríade bendita que justifica a passagem de qualquer homem por este mundo.»
Assim a justificou e, ciente de que… «Nem tudo é lei da vida ou lei da morte» Miguel Torga inscreveu o seu nome, por diversas vezes proposto ao Nobel da Literatura, de forma independente, mas cheia de humanidade, junto dos maiores das letras portuguesas, erigindo-se, por direito próprio, como uma referência moral e cultural.
«É bom isto de ser médico e poeta», diria.
Como homem, como médico, como escritor, Miguel Torga conservou uma fidelidade intransigente aos preceitos norteadores da sua conduta de vida:
«Ser idêntico em todos os momentos e situações. Recusar-me a ver o mundo pelos olhos dos outros e nunca pactuar com um lugar-comum.»
Esta biografia teve por base o livro O Essencial sobre Miguel Torga, de autoria de Isabel Vaz Ponce de Leão.