Há na paternidade um sinónimo, uma palavra que define tudo o que a relação entre pai e filho encerra – cumplicidade. Podem dizer que é também sinónimo de amor, de partilha, de verdade. Mas não é também isso a paternidade?
Por isso, fazem-se códigos que a cimenta. As piadas privadas que se dizem entre sorrisos e olhares. Talvez seja essa a coisa mais bela de se ser pai: ter uma pessoa com quem crescer enquanto se vê essa pessoa crescer.
Com o Guilherme, o meu mais velho, do alto dos seus 14 anos dez minutos nunca são dez minutos quando se pergunta quanto tempo demoras. São lusco-fusco. Roubada a piada ao Gato Fedorento, tornou-se nossa cumplicidade. O tempo deixa de ser «cinco, sete minutos», como lá diz o Ricardo Araújo Pereira e passa a ter um sinónimo: lusco‑fusco. É o tempo que demora a «nova noite» que, neste momento, «está em grande» em… Kinshasa. Não vou aqui contar o «cequeteche». Vão ver. O que digo é o seguinte: o lusco-fusco são «cinco, sete minutos», mas ditos naquela forma de gingão que se ouve do Ricardo Araújo Pereira.
Bem diz Ruy Belo: «o tempo é outro tempo nas terras pequenas». Como a cumplicidade, essa terra privada.
Leio, neste momento, Escrever, de Stephen King. Um manual de escritor para gente que quer ser escritora. Distancio-me dele, olho-o ao longe: aquilo é para escritores profissionais mas americanos, onde a história é tudo e o estilo vem depois. Ainda assim, continuo e gosto. Porque King não se fica só por aí e, mesmo quando fica, ensina algumas coisas que se devem tornar inesquecíveis para quem quer escrever. Dessas, a mais importante é a leitura. Escrever sem ler é como querer ser um treinador de futebol sem ver outros jogos.
Mas não é isso que me traz a este texto. Antes uma frase que me ficou pendurada (o David, o meu mais novo, começou a chorar e temos de deixar tudo pendurado para ir estabelecer cumplicidades – ou para o calar, deixemo-nos de lirismos). «O programa exigente de leitura e escrita que defendo – quatro a seis horas por dia, todos os dias – não vai parecer excessivo se…» – e começou o choro. Quantos lusco-fuscos são estes?
Não sei quantos escritores portugueses passam diariamente esse tempo a ler e a escrever. Diariamente, reitero. Todos os dias. Mas algo me diz que serão poucos. Até porque, quantos escritores profissionais existem aqui no burgo, daqueles que não fazem mais nada além de escrever? Meia dúzia? Lobo Antunes, claro – mas está reformado. Como me parecem estar Mário de Carvalho, Teolinda Gersão, Mário Cláudio, Lídia Jorge ou João de Melo, etc., etc., etc. Contem-se, é claro, como dos que cumprem. Mas, sem reformas associadas, talvez o José Luís Peixoto, o João Tordo, o Valter Hugo Mãe, o Bruno Vieira Amaral, quantos mais? E passarão todos estes que citei seis horas por dia a ler ou escrever, com rotinas diárias que fazem com que não se levantem da secretária antes de cumprirem as dez páginas diárias? (Também aqui, uma meta de King.) Não sei. Talvez. Mas o tempo é mesmo outro tempo nas terras grandes. Ser escritor nos Estados Unidos é mesmo muito outra coisa. Os nomes citados passam de certeza horas infindas no seu ofício, mas veja-se quantos são em comparação com a América. Mesmo que por defeito sejam cinco ou dez vezes mais, são sempre poucos. E contra mim falo. Aqui no burgo escreve-se pouco depois de ler. Lê-se pouco e escreve-se muito. E, quase sempre, para além de outro ofício.
Quer ser escritor? Leia. Quer ser escritor? Não se abstraia nem distraia. Lusco-fuscos é para cumplicidades paternais. Para a escrita são mesmo manhãs, tardes ou noites de diária dedicação.