As edições críticas são as versões dos textos mais aproximadas da presumível intenção do seu autor. A edição crítica recua até à origem desses textos, até aos testemunhos deixados pelo seu autor, analisa-os detalhadamente, e fixa, por critérios cientificamente definidos, a versão mais autêntica e mais próxima possível da genuína vontade do autor. Nas últimas semanas, a Imprensa disponibilizou no seu sítio de internet, para descarga e leitura gratuitas, os títulos Amor de Perdição e O Regicida, e O Demónio do Ouro da coleção «Edição Crítica das Obras de Camilo Castelo Branco», uma coleção que tem atualmente 8 volumes publicados. A coleção é coordenada pelo académico Ivo Castro, da Faculdade de Letras de Lisboa, e conta com um vasto leque de investigadores.
Hoje fica disponível o volume Memórias do Cárcere (clique aqui para começar a ler)
Memórias do Cárcere foi publicado pela primeira vez em 1862. Nele Camilo traça um retrato duro mas emocionante das inauditas condições de vida na histórica Cadeia da Relação do Porto, onde esteve preso, bem como da pesada justiça oitocentista, tendo como fio condutor a experiência vivida na primeira pessoa e outros testemunhos de vida, cuja singularidade Camilo quis deixar para memória futura.
No dizer de Abel Barros Baptista: «Um falsário que conta histórias, mais a biografia do famigerado Zé do Telhado, além de parricidas e infanticidas e ainda o homem que matou o burro dum abade: uma coleção de desgraçados, incluindo o próprio romancista, como sempre preso na maior vocação, falar dos outros.»
O presente volume conta com edição de Ivo Castro e Raquel Oliveira.
Camilo Castelo Branco (1825-1890) foi um dos maiores escritores portugueses do século XIX e é considerado por muitos o representante típico do Ultra Romantismo português. Romancista, cronista, crítico, dramaturgo, historiador, poeta e tradutor, foi de facto um dos escritores mais prolíferos e marcantes da literatura portuguesa, sendo também um dos primeiros escritores portugueses a viver exclusivamente da sua escrita. Por volta dos anos de 1880 não havia escritor mais famoso e celebrado em Portugal do que Camilo Castelo Branco, tendo, aliás, a Academia Real das Ciências de Lisboa chegado a prestar-lhe uma homenagem. Com uma biografia tão rica e atribulada quanto a sua bibliografia, recebeu, em 1885, do rei D. Luís I o título de 1.º Visconde de Correia Botelho. Camilo Castelo Branco contava então com 60 anos.
Boas leituras!
PREFÁCIO DA SEGUNDA EDIÇÃO
As Memórias do Cárcere foram escritas na convalescença duma grande enfermidade moral. Conheci quanto pode o homem sobre si próprio, em quarenta dias de laboriosa provação, que tantos empreguei em ordenar estes quadros, que constituíram dois pequenos volumes da primeira publicação. Consistiu a minha luta em fingir uma estoica serenidade, que, tão ao revés da minha índole, vinguei e dissimulei. Assim mesmo haviam relanços no livro em que o propósito não lograra sopesar o espírito. Esses relanços desagradam-me agora, e hei de cancelá los espontaneamente. Ainda bem que de mui pouco incomoda o arrependimento. Se me disserem que outro homem poderia dar mais louvável exemplo de cordura e mansidão, responderei que exemplo mais louvável só poderia dᬠlo quem se calasse, em analogia de circunstâncias. Isso, a tê-lo eu feito, me seria agora motivo de muito orgulho — o orgulho de quem se alevanta superior às dores e às afrontas. Este livro esteve a naufragar, quando eu cuidava que ele ia velejando em mar de leite. O título dera esperanças, que o texto desmentira. Afizera-se o venerando público à ideia de que as Memórias do Cárcere eram uma diatribe eriçada de injúrias, sarcasmos e glosas ao escândalo, que desgraçadamente as dispensava: tão à luz do Sol se desnudara arrastado por praças e tribunais. Saiu o livro, mentindo às esperanças de muita gente, que o esperava à feição de sua vontade para ter o prazer de me condenar. O resultado foi condenarem-me porque raras vezes estas páginas se enlamearam no assunto lastimável que as sugeriu. Para contrafazer ao desconceito que algumas pessoas votaram ao livro, saiu-me favorável o parecer doutras, que mostraram desejo de ver esta obra expurgada de algumas manchas que lhe afeiam a continente placidez com que discorre quasi sempre arredada da minha questão toda pessoal, e por isso mesmo odiosíssima. Desgostos mais graves me sobrevieram. Inimigos mais estúpidos que maus quiseram ver, no modo como falei do meu prestante e obsequiador amigo José Cardoso Vieira de Castro, uma intencional e pouco rebuçada desconsideração. Doeu-me deveras isto, mormente porque Vieira de Castro, de feito, se quis ver desconsiderado nesses períodos, que vão agora integralmente reproduzidos. A calúnia do gentio, empenhado em desatar os laços de muita estima e obrigação que me ligam àquele cavalheiro, enojava-me; porém, o assentimento do moço ilustrado às aleivosias dos lorpas doeu-me no mais sensível da minha alma. Se eu agora retocasse alguma das palavras referidas ao meu amigo, quem maior testemunho dava da sua miséria seria eu. Os alarves batiam as palmas, e Vieira de Castro pasmaria! A imprensa periódica foi benigna com este livro. Nenhuma crí tica, ao menos das que eu li, me infamou de escandaloso o escrito. Grande número dos censores notaram e louvaram a inofensiva contextura destas historietas, que, em geral, miravam a fazerem¬ se ler alegremente. Se o consegui, esta suprema violência, que fiz ao meu espírito, deverá ser tida em conta, não de habilidade, mas de muitíssima força d’ alma.
Camilo Castelo Branco in Prefácio à 2.ª Edição de Memórias do Cárcere