«Chamava‑se meu pai, segundo solene depoimento de minha mãe na hora da sua contrita morte, Pai Francisco Fagundes, homem limpo, de cor preta, caiador de ofício, morador em Lisboa, residente de dia a um canto do Rossio, de noute pelas vizinhanças da Ribeira Velha. Alguns disseram que também de noute variava não só a residência porém o ofício mesmo de meu pai, e que se de dia caiava com pote branco, à noute despejava pote de outra cor. Más‑línguas e invejosos que todo o ofício os tem e de que a história imparcial não deve tomar *partido. Eu a quem negou fortuna de conhecer nem um nem outro de meus honrados progenitores devo dar inteira fé a meu tio o Reverendo Padre Mestre Frei António da Apresentação de quem sei quanto deles conheço e a quem devo segunda vida pela educação e *ensino que me deu. Mas não anticipemos dados. Lá chegaremos breve.
Sucedeu que estando um dia meu pai na referida esquina do Rossio armado de seu pote e pincel com bom provimento de *caios e demais petrechos, o chamou um *lacaíto, dos que naqueles tempos chamavam andarilhos, que fosse à rua de *** n.º 34 onde precisavam de seu mister. Voou Pai Francisco ao n.º 34 da rua indicada e se achou intrando pelo espaçoso portão de um mais que mediano palacete, onde, recebido por uma rechonchuda matronaça que tinha toda a traça de lavadeira ou esfregadeira de casas, se pôs de caminho à obra designada que era se bem me lembro o caiamento de uma vasta cozinha e longo corredor. Entravam ainda *trastes para a casa, e o novo inquilino ou proprietário tinha de entrar aquele ou um dos dias seguintes.
Era o senhor meu pai de preta e caiada memória muito inclinado à ternura, e tinha segundo memória *minha, para os requebros d’amor, aqueles quindins e incidentes que para aquém de Lisboa se não aprendem e que d’aquém e d’além tanto avalia(10) o belo sexo assim como o nosso nele aprecia. E assim por sua natural inclinação como animado por antecedentes bonnes fortunes, entrado o temos logo de conversa com a rechonchuda esfregadeira cujas grosseiras mas substanciais e sólidas formas tinham já titilado com a ingénita propensão de Pai Francisco. — Longo não foi o assédio da praça ou porque não fosse ela difícil de entrar, ou porque realmente em Pai Francisco houvesse o irresistível feitiço de que o diziam dotado. Mas o caso e verdade são que ao cabo de meia hora dum lado jazia ele com troféu, pincel, escada e pote, do outro nadavam dispersos sobre *escuma d’água suja, escovas e alguidares, esfregões, bassouras, … e a ponderosa massa dos enxovalhados incantos da esfregadeira caíra nos braços d’évano (ou de pau santo) do novo Cipião africano.
Nesta atitude nada equívoca se achava o galante par, quando ao som de algumas vozes (porventura e decerto deles não ouvidas) se abriu a porta da cozinha, e precedido por uma espécie de mordomo entrava ao mesmo tempo um cavalheiro de mediana estatura e idade, ricamente vestido, porém de mal airoso porte, dando o braço a uma dama mais gorda que magra, mais baixa que alta,(11) e mais bonita que feia, custosa e primorosamente ataviada, olhos grandes, mas míopes e *quase em todo seu ar e ademã ressumbrava não sei que despejo e desgarre que mal se casava com tanto luxo e grandeza; ou antes mui bem lhe ficava pois já grandeza e modéstia se desavieram de andar juntas.
Imagine o leitor, se de imaginar é o caso, os gestos de admiração, de riso, de vergonha, de enleio e de confusão que nos atores, e espetadores dela(12) tão cómica cena excitou. O mordomo balbuciava imprecações e ameaças, o cavalheiro esfregava a testa e arqueiava os sobrolhos, a criadage sorria às furtadelas, a lavadeira *fregona arranjava os desalinhavados trapos,(13) e a fidalga, como inalterável no meio de tudo isto, observava com sua pendente luneta a meio rosto Pai Francisco que atordoado e perdido nem acertava a encobrir sua indecente desnudez, antes (e a fidalga sempre observando) se descompunha cada vez mais.
— ‘Com permissão de Vossa Senhoria’ rompeu o mordomo alfim — ‘forte desaforo! — vou castigar estes marotos. Canalha nesta casa! há desacato assim!’
— ‘Deixe estar’ — disse o fidalgo, ‘eu farei presente, e veremos …’
— ‘Senhor’, clamou a desgraçada deitando‑se aos pés do cavalheiro, ‘Senhor, tenha Vossa [Senhoria] dó da minha miséria …’
— ‘Pode ser, veremos, subirá por consulta; fale com o oficial do gabinete, eu não sei dessas cousas. Vá, vá com Deus, filha, os negócios amontoam‑se, falta‑me o tempo: que serviço, que trabalheira. Tomara‑me eu ver livre disto! Amanhã peço a minha demissão. É aquele intrigante do marquês que me quer perder, que me quer arruinar, que tudo revolve para me tirar a pasta! Nada nada; não tenho mais tempo: José Domingos(14) aqui não se aventura. Adeus Prima… não posso, não posso perder mais tempo…’ E larga o braço da dama, e sai a gritar pela *sege e pelos criados que o seguem perdidos ainda com riso, e mordendo *os beiços para não desandar à carcalhada.»
LEGENDA:
/*/ — leituras duvidosas ou conjeturadas
(10) tanto avalia] tanto <aprecia>
(11) alta, e mais bonita que feia] alta, ↑e mais bonita que feia↑
(12) espetadores dela] espetadores <de tal cena> ↑dela↑
(13) trapos, e a] trapos, <Pai Francisco> e a
(14) José Domingos] José <Firmino> <Luís>
Almeida Garrett, «Memórias de João Coradinho»,
in Fragmentos Romanescos, coleção Edição Crítica,
Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2015