Há para quem Philip Glass seja demasiado. Não por causa da modernidade (ou pós‑modernidade) que traz com ele, mas porque o estilo que cunhou («music in repetitive structures», ou, numa tradução livre, «música em estruturas repetitivas») provoca ansiedade. Não acho. Embora ele não goste muito do termo minimalismo, o género que criou com Steve Reich é, para mim, isso mesmo: o bater do coração sempre que o bater interno do compasso se repete. Serve este pequeno parágrafo para dizer que, por vezes, começo o dia a ouvir Glass para respirar mais pausadamente. E, num destes dias, foi isso mesmo que aconteceu.
Tendo uma crónica para escrever e pensar num tema para ela, foi mesmo Glass quem mo deu. Isto porque a sua autobiografia, editada há poucos anos em inglês e, sonho eu, um dia a ser publicada em português, tem como título Words Without Music. A pergunta que preside a este texto é: como traduzir o intraduzível?
Nos títulos isso acontece amiúde. E, por vezes, desiste-se e tenta-se o que mais aproxime o leitor português do que pensou quem escreveu o livro. Ou o poema. Há uns anos passei umas tardes de umas férias a traduzir o «Funeral Blues» de Auden. E fi-lo porque a primeira coisa que percebi é que, em português, funcionaria bem como «Canção Fúnebre». Não tem «song» no título, mas digam lá se não faz sentido?… (Leio-o agora e percebo que ficaria melhor ainda como «Canção Triste»… Quando reeditar, será assim. E é já a seguir.)
Noutra altura, tratei da edição da autobiografia de Patrick Swayze, escrita com a sua esposa Lisa Niemi e publicada pouco antes da sua morte. Tem o excelente título, na sua versão original, de Time of My Life, piscando o olho ao filme Dirty Dancing. Que, espantemo-nos, se chamou em Portugal Dança Comigo. Quando enviei, por obrigação contratual, a capa para a agente, recebi um email furioso dando conta de que o título que escolhera nada tinha a ver com o original. Expliquei então à senhora que O Tempo da Minha Vida não iria vender um exemplar e que, como esse título citava a música do filme que celebrizou Swayze, o título que lia era o mais adequado. Qual? Dança Comigo, claro. Ainda para mais tendo sido os dois dançarinos e o livro escrito a meias pelo casal.
Glass não merece que um editor português seja literal se por cá se conseguir publicar a obra. «Palavras sem Música» perde todo o duplo significado e acaba até por ser ofensivo, julgo. Mas, tenho de confessar, ainda não tenho solução para isso. Talvez substituindo o «sem», sendo algo como «Palavras em vez de Música». Mas aceitam-se sugestões para o título de um livro que ainda não está previsto publicar cá.
Para já, deixo-vos com a minha versão do Auden. Acho que está muito diferente do original. Mas segui uma só premissa: se o Auden escrevesse em português, que poema era este? Cada um é o Graça Moura que consegue ser…
Como ainda é dia de Reis — ou quase — desejo a todos um bom ano. O segredo para saber quando terminar de desejar é o silêncio: só se responde com bom ano se do outro lado vier o cumprimento. Ajuda a minimizar situações embaraçosas. Não resolvi a questão do título mas já dei a minha dica da semana.
Canção Triste
[Auden]
Parem os relógios, desliguem o telefone, amordacem
o cão com um osso enorme. Calem os pianos e, com
um pequeno tambor, tragam o caixão, aproxime-se a dor.
Que os aviões se lamentem em círculos pelo céu, rabiscando
nas nuvens: Ele Morreu. Enlutem a nação no pescoço branco
das pombas, deixem os polícias usar as mais negras luvas.
Ele era o meu Norte, meu Sul, meu Este e Oeste; a minha féria
e o meu domingo de descanso. O meu dia, a minha noite,
a minha fala e canção; pensei que o amor durava para sempre
— não. As estrelas não são queridas, já: desliguem-nas.
Arquivem a lua e retirem o sol. Despejem o mar e varram
a terra, porque nada, agora, poderá vir a ser um dia melhor.