A marquesa de Alorna é uma das raríssimas escritoras anteriores a 1900 que é regularmente mencionada pelos historiadores da Literatura Portuguesa. Chamava-se D. Leonor de Almeida Portugal Lorena e Lencastre, nasceu em Lisboa, em 31 de outubro de 1750, e foi a primogénita dos três filhos de D. João de Almeida Portugal (1726-1802) e D. Leonor de Lorena e Távora, 2.os marqueses de Alorna. Apesar de o conhecimento sobre a sua biografia ter avançado significativamente nas últimas décadas, a verdade é que há períodos da sua vida que continuam a ser mal conhecidos.
Nota biográfica por Vanda Anastácio
Infância e juventude no mosteiro de Chelas
Pouco se sabe acerca dos primeiros anos da sua vida, mas as datas permitem deduzir que aos 5 anos D. Leonor terá assistido ao terramoto de 1755, apesar de não se lhe referir nem nas obras nem na correspondência. De acordo com o seu testemunho, o acontecimento que mais abalou a sua infância foi o que ocorreu em 1758, quando, na sequência do atentado ao rei D. José I ocorrido em 3 de setembro, foi separada do pai (preso em 13 de dezembro) e encerrada no mosteiro de São Félix, em Chelas, no dia 14 do mesmo mês.
Como se sabe, a responsabilidade da tentativa de regicídio foi imputada aos marqueses de Távora, avós maternos de D. Leonor de Almeida, bem como a seus tios e ao duque de Aveiro, que foram presos em dezembro de 1758 e condenados por sentença da Junta da Inconfidência de 12 de janeiro de 1759. A violência do castigo, que se seguiu a um processo judicial ainda hoje pouco claro, chocou a opinião pública da altura: foi erguido um patíbulo em Belém, sobre o qual a marquesa de Távora foi publicamente degolada e onde o marquês, seu marido, os filhos e o duque de Aveiro foram supliciados e queimados. Numa sociedade do Antigo Regime, estruturada a partir de valores como o sangue, o nome e a Casa, a implicação de alguém num crime de lesa-majestade era suficiente para fazer cair uma mancha de suspeita e de desonra sobre todos os membros da família. Essa suspeita parece explicar a prisão do 2.º marquês de Alorna, D. João de Almeida Portugal, apesar de este nunca ter chegado a ser formalmente acusado de qualquer crime. Como consequência, a mulher e filhas do marquês (D. Leonor e D. Maria Rita) foram encerradas no convento já mencionado, enquanto o herdeiro da Casa, D. Pedro, então com 4 anos, era colocado sob a tutela direta do Ministro Sebastião José de Carvalho e Melo. A família Alorna só seria libertada em 1777, depois da morte de D. José I e do afastamento do Marquês de Pombal.
Em data difícil de precisar, mas que poderá ter sido próxima de 1763, D. João de Almeida conseguiu fazer sair da prisão, com a conivência de guardas e de criados, algumas mensagens dirigidas à esposa. Subornando portadores e inventando esquemas para a entrega quer de mensagens quer de materiais de escrita, foi possível aos diversos membros da família Alorna trocar correspondência. As missivas enviadas por D. Leonor durante os anos de clausura quer ao pai quer à condessa do Vimieiro, D. Teresa de Mello Breyner (uma senhora onze anos mais velha que ela e ainda aparentada com a família Távora que se tornou visita assídua de Chelas a partir de 1770), constituem um documento vivo dos interesses intelectuais da jovem. Dão conta, por exemplo, dos estratagemas de que se servia, quer para conseguir ter lições com regularidade apesar da rigidez das regras conventuais, quer para conseguir obter os livros mais recentes. Nas suas cartas, D. Leonor conta ao pai que participava nos outeiros poéticos organizados em Chelas em dias de festividades religiosas e por ocasião das eleições das Preladas. Estes relatos comprovam que foi durante esses anos que se tornou exímia na técnica do improviso poético e da glosa a partir de motes sugeridos por outrem. Foi também nessa época que começou a iniciar-se na composição de obras de maior fôlego, como as odes, os idílios, as epístolas, etc., que exigiam o conhecimento aprofundado da Poética rigorosamente codificada que era a do tempo.
As visitas de Chelas
A autora afirmará até ao fim da sua vida que começou a escrever poesia para distrair seu pai das agruras do cárcere e, com efeito, a documentação conservada dá conta de frequentes envios de poemas seus a D. João de Almeida Portugal, juntamente com manuscritos de poetas da Arcádia Lusitana, como Correia Garção (1724-1772) e António Dinis da Cruz e Silva (1731-1799), mas, também, da condessa do Vimieiro (1739-post 1793), de João Xavier de Matos (c. 1730-1798), de Joana Isabel Forjaz de Lencastre (1749-?), de Filinto Elísio (1734-1819), etc., que lhe chegavam às mãos em cópias enviadas não apenas pelos próprios mas também por terceiros. Esta intensa circulação de textos explica que ainda durante o tempo que D. Leonor viveu reclusa a fama do seu talento se tenha espalhado por Lisboa. A lista dos poetas que visitaram D. Leonor ao longo dos dezoito anos de encerramento conventual é longa. Relativamente assíduos na grade do mosteiro ou até com entrada nele, foram Filinto Elísio (que parece ter sido o primeiro a atribuir à poetisa o nome literário de Alcipe, embora não seja claro em que data esta o terá adotado), bem como frei José do Coração de Jesus (?-1795), que adotou o pseudónimo de Almeno, foi tradutor de Ovídio e era amigo de António Ribeiro dos Santos (1745-1818), o primeiro bibliotecário-mor da Biblioteca Pública da Corte nomeado quando esta foi criada em 1796. Este último autor, conhecido na Arcádia Lusitana como Elpino Duriense, acompanhava por vezes Almeno nas visitas a Chelas. Outros frequentadores do mesmo grupo eram frei Alexandre da Silva (1737-1818) (também conhecido como frei Alexandre da Sagrada Família, que chegou a ser bispo de Angra), designado poeticamente por Sílvio, o médico das três senhoras, Dr. Tamagnini, a quem D. Leonor designava pelos nomes de Alceste e de Haller, o poeta José Ferreira Barroco (conhecido também como Albano) e o árcade Alfeno Cíntio, de seu nome Domingos Maximiano Torres (1748-1810). Quando em 1777 a família Alorna foi libertada, o facto foi celebrado em verso por alguns destes poetas.
A vida depois de Chelas
Em 1779, apesar da oposição do pai, D. Leonor de Almeida casou com o conde de Oeynhausen (1739-1793), alemão, luterano e de situação financeira pouco próspera. Para poder desposá-la, o conde abjurou da sua fé numa cerimónia pública de batismo realizada em 15 de fevereiro de 1778, na qual foram padrinhos a rainha D. Maria I e o rei D. Pedro III. D. Leonor casou exatamente um ano depois e mudou-se para o Porto, onde o marido desempenhou um cargo militar até 1780. Foi nesta cidade que deu à luz a sua primeira filha, D. Leonor Benedita, que viria a casar com o 6.º marquês de Fronteira. Graças à interferência da poetisa junto da rainha, o conde de Oeynhausen foi nomeado Ministro Plenipotenciário em Viena de Áustria, e o casal mudou-se para essa cidade ainda nesse mesmo ano. Em Viena, D. Leonor de Almeida Portugal e Oeynhausen estabeleceu relações de cordialidade com o imperador Joseph II, que a condecorou, com o papa Pio VI, que visitou a cidade nesse período, com o poeta, libretista e dramaturgo Pietro Metastasio (1698-1782), com o filósofo Moses Mendelssohn (1729-1786) e com o músico português abade Costa (1714? –1780?), que dela fala nas suas cartas com apreço. A correspondência trocada com a condessa do Vimieiro por esses anos documenta o seu encontro com a cantora portuguesa Luísa Todi (1753-1833) bem como a frequência dos salões vienenses e a amizade com a condessa Maria Wilhelmine de Uhlfeld, Condessa Thun‑Hohenstein (1744-1800). A sua integração nos círculos da alta aristocracia da cidade é confirmada pelo facto de o nome de seu marido figurar na lista dos subscritores dos concertos aí tocados por Wolfgang A. Mozart em 1784. Entre os anos de 1780 e de 1784 D. Leonor dará à luz mais três filhas: Maria Regina, Frederica e Juliana, a primeira das quais viria a falecer com pouco mais de um ano de idade. Apesar da sua integração na vida social e do interesse pela língua e pela literatura alemãs (que viria a manter durante toda a vida), a permanência de Alcipe em Viena foi relativamente curta: o casal abandonou a Áustria nos finais de 1784 para se estabelecer, em outubro do mesmo ano, em Avinhão. Entre esta data e 1786 nasceram mais dois filhos: Mário Carlos Augusto, que viria a falecer quatro anos mais tarde, e Henriqueta. A família Oeynhausen permaneceu cerca de seis anos no Sul da França, mas sabe-se que entre 1787-1788 Alcipe passou uma longa temporada em Lisboa sem o marido, procurando mover influências a favor deste junto da rainha D. Maria I. Após o regresso dos condes a Portugal, em 1790, D. Leonor teve ainda mais dois filhos, João Ulrico e Luísa. Carlos Augusto de Oeynhausen viu-se nomeado para o cargo de governador militar do Algarve, mas não chegou a exercê-lo, por ter falecido em 3 de março de 1793.
Viuvez e exílio
A generalidade dos biógrafos conta que depois da morte do conde de Oeynhausen D. Leonor de Almeida se teria retirado para as propriedades da família em Almeirim e em Almada, onde se teria dedicado à educação dos filhos, à beneficência e à instrução de moças da região. No entanto, a amizade literária com D. Catarina Micaela de Lencastre, 1.ª viscondessa de Balsemão (1749-1824), que as suas obras documentam, parece estreitar-se nesta época e, entre os anos de 1793 e 1802, manteve relações de intercâmbio literário com alguns poetas da Academia de Belas Letras (associação que também ficou conhecida pela designação de Nova Arcádia), como Francisco Joaquim Bingre (1763-1856) e outros. É datável do mesmo período o relacionamento com Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765-1805), comprovado não só pela troca de poemas entre ambos mas, também, pelo facto de o nome da condessa de Oeynhausen figurar entre os subscritores do tomo II das suas Rimas em 1799 e de Manuel Maria lhe ter dedicado o tomo III das mesmas, impresso em 1804.
Nestes primeiros anos da sua viuvez, a condessa de Oeynhausen parece ter gozado de algum favor junto da Corte, apesar de D. Maria I estar já, nessa data, afastada do poder. Com feito, foi nomeada dama de honor de D. Carlota Joaquina por Alvará de 9 de novembro de 1801 e, no ano seguinte, foi formalmente convidada a sugerir os temas a tratar na decoração do Palácio da Ajuda. Segundo relata seu neto, José Trazimundo de Mascarenhas Barreto, em 6 de outubro de 1802, por motivos ainda não esclarecidos, mas que este supunha estarem relacionados com a criação de uma sociedade secreta denominada «Sociedade da Rosa», D. Leonor teria sido intimada pelo intendente geral da Polícia a abandonar o país. O facto é que passou os anos de 1803 a 1814 no exílio, primeiro em Espanha (até 1804) e depois em Inglaterra, ao que parece envolvida em atividades de carácter político em apoio da Contra-Revolução francesa. É neste país que se relacionará com madame de Staël (1766-1817), bem como com o duque de Palmela, embaixador de Portugal em Londres, a quem designará por Holsténio na sua poesia.
Regressará a Portugal em 1 de julho de 1814, depois da morte do irmão (ocorrida em 2 de janeiro de 1813, em Königsberg) e dedicar-se-á, durante os dez anos seguintes, à reabilitação da memória deste último, que havia sido condenado por inconfidência pelo facto de ter comandado a Legião Portuguesa, integrada no exército napoleónico. Acabou por conseguir a revisão da sentença e a recuperação dos títulos de marquês de Alorna e de conde de Assumar em 1823. O facto de sua cunhada e seus dois sobrinhos serem já falecidos tornou-a herdeira destes.
Regresso a Portugal
Foi sobretudo depois do seu regresso da Grã-Bretanha que D. Leonor de Almeida Portugal ocupou um lugar central na vida intelectual lisboeta. Apesar de ter lutado com dificuldades financeiras até à data da sua morte, ocorrida em 11 de outubro de 1839 poucos dias antes de completar os 89 anos, a marquesa de Alorna abriu as portas das várias residências onde viveu na cidade de Lisboa a poetas e literatos, que a visitavam também durante as temporadas que passava em Almada e até mesmo em casa do marquês de Fronteira, seu neto, no Palácio de São Domingos de Benfica. A crer nas referências dos contemporâneos que a conheceram nesta fase, D. Leonor tornara-se uma figura central nas tertúlias literárias da capital, desempenhando o papel de mediadora entre poetas de gerações diversas, que viam a frequência do seu círculo de relações como um sinal de prestígio e de legitimação do talento. Entre os anos de 1816 e 1829, D. Leonor frequentou as assembleias que tinham lugar em casa de Francisca Possolo da Costa (1783-1838), uma escritora 33 anos mais jovem, em cujos salões se juntavam não só personalidades ligadas ao liberalismo, com as quais o marido desta mantinha excelentes relações, mas, também, poetas de várias idades e diferentes percursos ideológicos.
Nas Memórias de Castilho são referidos os nomes de Belchior Curvo Semedo (1766‑1838), que fora membro da Academia de Belas Letras e contendor de Bocage nos anos de 1790, do conde de Sabugal (1778-1839), que havia combatido na Legião Portuguesa sob as ordens do irmão de Alcipe, de Francisco Freire de Carvalho (1779‑1854), que Alcipe designa na sua poesia por Filinto Júnior, e de Domingos Borges de Barros (1780-1855), que viria a obter o título de visconde da Pedra Branca e mais tarde desempenharia o cargo de embaixador do Brasil em Paris. Pela mesma época, encontramos entre os frequentadores das reuniões da marquesa de Alorna poetas então muito jovens, como António Feliciano de Castilho (1800-1875) ou Alexandre Herculano (1810-1877), que descrevem a autora como uma figura tutelar. Tal como aconteceu com a grande maioria dos poetas seus contemporâneos, a obra poética de D. Leonor de Almeida foi dada à estampa postumamente. Em 1844, cinco anos depois da sua morte, surgiu a coletânea intitulada Obras poeticas de D. Leonor d’Almeida Portugal Lorena e Lencastre, marqueza d’Alorna, condessa d’Assumar, e d’Oeynhausen, conhecida entre os poetas portuguezes pelo nome de Alcipe, em 6 volumes, por iniciativa de Henriqueta e de Frederica de Oeynhausen, filhas desta. Esta publicação inclui, para além de obras poéticas originais, adaptações livres de textos de Amelia Opie e de madame Des Houlières bem como traduções de Claudiano, Gray, Goethe, Bürger, Cronek, Metastasio, Milton, Thompson, Goldsmith, Lamartine, Klopstock, Wieland e do pseudo-Ossian.
Nota biobibliográfica por Vanda Anastácio, retirada do livro Obras Poéticas, de Marquesa de Alorna, Imprensa Nacional, 2015.