Por Helena Carvalhão Buescu
João Batista da Silva Leitão de Almeida Garrett, nascido no Porto em 1799 e falecido em Lisboa em 1854, é sem dúvida um dos nomes fundadores não só do Romantismo português mas ainda de uma conceção tipicamente moderna do intelectual e do papel cívico e político que lhe cabe. A sua sustentada formação clássica, orientada por um seu tio, é visível em grande parte da sua obra, que pode assim considerar‑se, globalmente, como uma manifestação particularmente evidente das potencialidades de cruzamento e até conciliação entre as matrizes clássica e romântica.
Encontramo‑lo em 1816 matriculado na Universidade de Coimbra, já manifestando as duas vertentes, que prosseguirá ao longo da sua vida, de intervenção sociopolítica e estético‑literária. Publica em 1821 a sua primeira obra, Retrato de Vénus, na mesma altura em que, acabado o curso, ingressa na administração pública. Mas logo em 1823, na sequência de um golpe de estado de caráter absolutista, é obrigado a fugir, optando por um exílio em Inglaterra e em França que, com intermitências, se prolongará até ao início da década de 30, altura em que integra a expedição de D. Pedro, lutando ao lado do exército liberal. As repercussões deste seu exílio são enormes, quer no aprofundamento dos seus ideais liberais quer no direto conhecimento das complexas movimentações estéticas e literárias que, na Europa já então romântica, veem surgir algumas das suas obras mais significativas. É imbuído deste espírito que Garrett escreve os dois poemas narrativos geralmente considerados como textos onde a estética romântica pela primeira vez consistentemente se manifesta em Portugal, Camões, 1825, e Dona Branca, 1826 (aliás, ambos publicados no estrangeiro, como o tratado Da Educação, 1828, a sua primeira recolha poética, Lírica de João Mínimo, 1829, e o poema Adozinda, 1828, primeira recolha do romanceiro popular que posteriormente aprofundará com a publicação do Romanceiro, 1843).
De forma sintética, é possível dizer de Garrett que a sua obra dos anos de formação manifesta sentido inesgotável de curiosidade intelectual e de experimentação literária que permanecerá como seu traço distintivo. Repare‑se, com efeito, na multiplicidade de géneros e de objetivos literários que o conjunto da sua obra mais juvenil atesta: a poesia lírica (Lírica de João Mínimo) reflete já a posição da ironia romântica e da diluição entre realidade e experiência literária que voltaremos a reencontrar em textos como O Arco de Sant’Ana ou Viagens na Minha Terra; os poemas narrativos românticos (Camões e Dona Branca) oferecem a qualidade de alguns dos traços tipicamente garrettianos, desde a criação de uma mitologia pessoal (Camões) até ao uso do substrato popular, na esteira de Herder; o ensaio pedagógico (Tratado da Educação) revela um conjunto de preocupações cívicas que não mais abandonarão o cidadão e o intelectual que Garrett sempre fará questão de ser; finalmente, Adozinda surge, em Portugal, como a primeira atestação escrita da poesia oral e tradicional portuguesa, no que mais tarde virá a ser a compilação garrettiana do Romanceiro (3 vols., 1843‑1851). Em termos gerais, este período dá conta de um autor em maturação e dinâmica aprendizagem dos procedimentos literários e dos grandes objetivos estéticos por que pautará a sua ação, que aliás nunca poderemos desligar da afirmação e da ação cívica; é também por esta razão que este período de formação, exemplarmente estudado por Ofélia Paiva Monteiro, deve ser contextualmente considerado como de especial importância para a conformação da figura de Almeida Garrett como escritor romântico e como figura‑chave da afirmação da modernidade literária em Portugal.
É, entretanto, com o seu regresso definitivo do exílio, em 1836, depois da vitória do liberalismo em Portugal, na sequência de uma prolongada guerra civil em que desempenhou (como Alexandre Herculano) um papel ativo, que Garrett encontrará as condições necessárias para poder desenvolver e amplificar o seu labor literário, intelectual e cívico.
Assim, a partir de meados da década de 30 a sua ação de intervenção cultural aprofunda‑se e alarga‑se, pautando‑se sempre pelos princípios que até aí o tinham norteado. É colaborador (e mesmo redator principal, por vezes quase único) de uma série de jornais e revistas, redige planos para o restabelecimento do teatro nacional (o género dramático já desde bem cedo o tinha interessado, como tinha já demonstrado com as suas tragédias juvenis Catão e Mérope), torna‑se enfim na figura do polígrafo incansável e participativo: Almeida Garrett será o dramaturgo cuja produção literária se integra num projeto, já romântico, de criação de um repertório nacional (Um Auto de Gil Vicente, 1838, Dona Filipa de Vilhena, 1840, O Alfageme de Santarém, 1842, e sobretudo o seu magnífico texto de maturidade que é Frei Luís de Sousa, 1844); o poeta lírico que, de Flores sem Fruto, 1845, a Folhas Caídas, 1853, soube dar forma a todo um conjunto de temas, motivos, ritmos e operações retóricas já manifestamente libertos da dicção clássica em que tinha sido educado; o romancista, tentado pelas duas grandes formas de expressão romanesca romântica, o romance histórico (O Arco de Sant’Ana, 2 vols., 1845 e 1850) e o romance contemporâneo intimista e digressivo (Viagens na Minha Terra, cujos primeiros capítulos foram publicados, sem o resumo inicial que depois neles foi integrado, na Revista Universal Lisbonense, em 1843); e, além disto, o jurista e o pedagogo, o jornalista e o político, o compilador da tradição oral portuguesa e o ensaísta. Garrett foi sem dúvida uma «instituição» irrecusável da primeira metade do século XIX em Portugal, nome pelo qual passa tudo quanto de significativo e consequente na época foi tentado dentro do panorama intelectual e literário português.
Vejamos, pois, alguns dos traços distintivos que a sua obra reúne, nos cerca de 20 anos que medeiam entre o seu regresso a Portugal depois do exílio e a sua morte em 1854, tendo sempre no horizonte a prática polifacetada, de intensa curiosidade e experimentação, que é um dos atributos decisivos que Garrett oferece, desde logo, à formação de uma literatura portuguesa realmente moderna.
Olhemos em primeiro lugar para a produção dramática, que desde o período da sua formação atraiu, como vimos, Almeida Garrett. Os seus primeiros textos, ainda imbuídos da experiência clássica, Catão e Mérope, já davam conta da centralidade da res publica no pensamento e na obra garrettianos. Mas é entre 1838 e 1843, num período pois muito curto, que Garrett escreve e vê encenados três textos dramáticos em que lança as bases de um repertório para a dramaturgia portuguesa oitocentista. Um Auto de Gil Vicente (1838) e O Alfageme de Santarém (1842) retomam a matéria portuguesa como inspiração de base para a produção textual, funcionando ainda como lugares de clara autorreflexão estética e programática (em particular com a figura tutelar de Gil Vicente, que Garrett vai buscar de forma paralela à que tinha feito com Camões), que encontrarão entretanto no drama Frei Luís de Sousa (1843) uma das formulações literariamente mais conseguidas dentro de toda a produção dramática portuguesa.
Com efeito, este texto dramático representa um dos expoentes da literatura romântica em Portugal, em particular do género dramático. A Memória ao Conservatório Real, prefácio de enorme importância autorreflexiva, permite a Almeida Garrett expor de forma especialmente certeira os princípios norteadores do seu pensamento e da sua prática estéticos, num momento (meados da década de 40) em que se encontra no pleno exercício das suas capacidades enquanto escritor e cidadão. Ambas as preocupações se refletem nas suas obras maiores que são Frei Luís de Sousa, no teatro, e Viagens na Minha Terra, no romance. Este tipo de interrogações históricas permite‑nos compreender os profundos laços existentes entre a produção dramática de Garrett da década de 40 e a sua produção romanesca, já em O Arco de Sant’Ana (publicado em 2 volumes em 1845 e 1850), e com especial destaque em Viagens na Minha Terra (1846). Almeida Garrett deixaria ainda incompleto um outro romance, de matéria exótica (passado no Brasil), intitulado Helena.
O Arco é um romance de matéria histórica, que regressa à Idade Média para na realidade contar uma história cuja leitura contemporânea não só é evidente como é aliás diretamente apontada pelo próprio Garrett. Viagens na Minha Terra, por seu turno, surge em volume em 1846, e representa um marco na história do romance em Portugal, não apenas por aquilo que sintetiza de tradições e heranças, mas ainda pelo que abre de prática romanesca e discursiva para o futuro. Semelhante maturação se pode seguir na lírica garrettiana, desde a compilação juvenil da Lírica de João Mínimo (1829) a Flores sem Fruto (1845) e Folhas Caídas (1853), sendo este último título a compilação em que Garrett se liberta de qualquer tipo de espartilho de escola para abraçar um discurso fluido, criando a ilusão da espontaneidade e da coloquialidade, em que a herança da poesia popular é decisiva.
Resta lembrar a atividade de Almeida Garrett enquanto intelectual e político, de argutas intervenções e decisões culturais e literárias. Juntamente com Alexandre Herculano, seu companheiro de lutas ideológicas e estéticas, Garrett atingiu um estatuto de alcance simbólico enquanto ativista empenhado e convicto: relembre‑se o seu papel como lutador liberal durante e após a Guerra Civil; as suas extraordinárias capacidades como orador político; a sua conseguida educação literária em literaturas clássicas e modernas; o seu estatuto moral e social. Se a tudo isto acrescentarmos a sua constante e intensa produção literária (como romancista, poeta, dramaturgo, ensaísta, crítico, político e legislador, colaborador de diversos periódicos, fundador e diretor de vários), tornar‑se‑á evidente que Garrett desempenha na vida intelectual portuguesa da 1.ª metade de Oitocentos o papel decisivo do escritor romântico: um verdadeiro intelectual, cuja obra literária articula a qualidade e variação estética com o poder de intervenção cívica.
Helena Carvalhão Buescu in «Nota biobibliográfica» in Camões, publicado, em 2018, na coleção «Biblioteca Fundamental da Literatura Portuguesa», Imprensa Nacional.