Transcrevemos aqui as primeiras páginas deste pequeno grande livro que conta a história de um enorme senhor: Salgueiro Maia.
Era uma vez um capitão que aprendeu a fazer a guerra, mas que preferia a paz para
poder ler, viver e ser feliz. Da guerra sabia tudo ou quase tudo. Noutros tempos teria sido cavaleiro, porque a sua arma era Cavalaria, mas, como os tempos mudam, o seu cavalo passou a ser um tanque de guerra, daqueles grandes e possantes que cospem fogo e
derrubam casas, quartéis e muralhas, quando é preciso, quando a paz é vencida.
Foi no dia 1 de julho de 1944 que viu a luz, na vila alentejana de Castelo de Vide, filho de um trabalhador ferroviário. Cresceu a ouvir falar da vida difícil de quem trabalhava nos comboios que percorriam Portugal de norte a sul. Talvez por ter crescido a ver chegar e partir comboios, grandes cavalos de ferro como os tanques que mais tarde viria a comandar, acostumou-se a ser rigoroso e pontual.
E nem precisava de ouvir o apito para saber que tinha de estar sempre a horas onde o dever o chamava. Assim foi, também, na madrugada de 25 de Abril de 1974. Se ele se tivesse atrasado com os seus blindados e os seus homens, talvez a História se tivesse também atrasado, para mal de todos nós.
Era uma vez um capitão que nunca deixou de ter uma névoa de tristeza a toldar-lhe os olhos claros. Quis o destino que fosse um menino triste, porque teve muito cedo um encontro marcado com o sofrimento e com a morte.
Havia nos seus olhos claros e tristes uma claridade que não engana. Essa claridade sempre foi um sinal de esperança, do mesmo modo que, no seu jeito muito especial de estar e de ser, a dureza era irmã gémea da ternura.
Um dia, quando ia fazer quatro anos, veio a Lisboa com os pais para visitar o Jardim
Zoológico, sonho de todos os meninos da sua idade, e um autocarro atropelou-lhe os pais.
O pai salvou-se, mas a mãe partiu para nunca mais voltar.
Como as lágrimas que não chegam a ser choradas se tornam pétalas negras na árvore
da memória, o menino que depois seria capitão nunca se livrou do escuro véu da morte da mãe quando mais precisava dela e da sua ternura. Desse dia em diante, nunca mais quis ver Lisboa, não por ser uma cidade feia ou violenta, mas por ter sido o sítio da morte da mãe, num domingo que devia ter sido calmo e feliz. Muitas vezes voltará à cidade grande, mas sempre com um nó no coração e outro na garganta, daqueles que sufocam a voz e deixam nela o travo amargo das lágrimas.
Quando olha para a cidade, vêm-lhe sempre à memória as horas amargas que nela passou
quando o destino teimou em roubar-lhe a alegria de uma infância feliz. Gostava de olhar a cidade de outra maneira, de ver o casario branco e o ágil voo das gaivotas de um modo diferente, mas há sempre uma mancha de tristeza que o impede.
Por vezes olha para as crianças da sua idade e pergunta baixinho: «Porque terei sido eu o escolhido para conhecer a infelicidade tão de perto?» Esse sentimento de injustiça deixa-o revoltado. Está ferido na alma e não consegue esconder a profundidade dessa mágoa que as palavras não chegam para dizer.
O pai volta a casar, e o menino ganha uma nova mãe, a quem sempre chamará apenas
«madrinha». A sua tristeza, essa, filha da chaga que nunca sarou na memória, fica para sempre presente nos seus olhos e nos seus dias. Não gosta de jogar à bola, mas gosta de ler e de falar das coisas da guerra, por ser duro e rijo como as armas com as
quais, já militar, terá de lidar.
Quem se lembra dele nesse tempo, na sua escola e fora dela, descreve-o como um rapaz tímido, generoso e direto, daqueles que não gostam de contornar a verdade e de se refugiar atrás de meias palavras. Uma pessoa de antes quebrar que torcer. Numa idade em que ainda ninguém sabe o que quer ser, já ele dá como certo que, um dia, há de
ser militar. Corta o cabelo à escovinha, gosta de se sentir forte e de usar a voz possante que tem para deixar claro o que pensa e o que sente. Foi talhado para mandar, para comandar, sendo essa uma qualidade primeira em quem segue a carreira das armas. Ele não esconde que esse será o seu rumo e o seu destino.
Do peito nunca mais tirará a medalha de ouro que tem incrustado o retrato da mãe. É o símbolo de uma memória que nunca se apagará, porque guarda todos os afetos que fazem a beleza e a grandeza da infância. Aquela medalha ajuda a preencher um vazio que passa a fazer parte da maneira de ser de um homem. De um homem que nunca deixa de ser menino, quando lhe dá para brincar com os outros, sem contudo perder o porte de quem se tornou adulto e homem de ideias firmes e claras.
Um dia, em julho de 1971, embarca para a Guiné com mais 150 homens. É oficial e vai fazer a guerra, uma guerra que acabará por descobrir que é injusta e que, por ser injusta, não deve durar muito mais tempo, pois há um país inteiro que sofre por ver morrer os seus filhos longe de casa e longe daqueles que mais os amam. Há de chegar a noite em que será, finalmente, tempo de impor a paz. Ele não sabe, não pode saber, quanto tempo irá durar essa espera, mas está disposto a esperar, porque é obstinado e firme, porque gosta de partir das dúvidas para as certezas, porque gosta de percorrer os caminhos mais difíceis, porque acredita que um dia ainda poderá ser feliz. (…)