Escrito entre 1987 e 2016, este livro é no dizer do seu autor «[…] um livro de descoberta e de relatos de processos sobre assuntos e problemas de filologia e de crítica textual aplicados aos manuscritos de Fernando Pessoa […]»
Transcrevemos e damos aqui a conhecer, em primeira mão, o Prólogo deste livro, assinado por Luiz Fagundes Duarte.
A minha condição de eterno filólogo aprendiz estriba-se em quatro homens de exceção: D. Afonso III, Antero de Quental, Eça de Queiroz e Fernando Pessoa. Do primeiro, editei-lhe os documentos oficiais que mandou escrever em português; do segundo, editei-lhe a poesia toda e cheguei à conclusão de que, sem ele, Pessoa não seria, em parte, aquele que conhecemos; do terceiro, além de lhe editar o romance falhado A Capital!, estudei-lhe a maneira como compunha este e outros romances; e do quarto, é o que por este livro se poderá ver.
Com todos me fascinei, com todos me desiludi.
Primeiro, D. Afonso III, que tinha a convicção de que «foy achada a escritura que as cousas traspasadas per firmidõ da escritura seiã sempre presentes», e que por isso mesmo representou a minha primeira desilusão — que o meu posterior trabalho como filólogo e crítico textual viria a confirmar: a escrita não é coisa firme.
Segundo, Antero de Quental, que me convenceu de que o autor é que é, de facto, o dono dos seus manuscritos e dos seus textos.
Terceiro, Eça de Queiroz, que me revelou a cena de um escritor nos seus trabalhos de escrita — ele próprio, disfarçado de Gonçalo Mendes Ramires — que «labutava, empurrando a pena como lento arado em chão pedregoso»: porque escrever é coisa difícil.
E quarto, Fernando Pessoa — que passou quase toda a sua vida a sonhar com livros onde reuniria, planeadamente, toda a sua produção poética, e que acabaria por morrer sem os ver concretizados — à exceção da Mensagem que, em grande parte, é um livro que houve à custa da predação de outros que não houve: porque os livros são coisa transitória.
O livro que se segue — coisa transitória sobre as dificuldades da escrita que é coisa movediça — reúne uma parte do trabalho ensaístico que, como crítico textual, fui fazendo e publicando ao longo de trinta anos (incluindo os dezoito em que, estando a exercer funções políticas, apenas intermitentemente fui visitando as atividades de investigação filológica) acerca dos papéis de Fernando Pessoa e de muito daquilo que lá encontrei. E é, em parte, documento do trabalho de aplicação de modelos teóricos e de aparelhos técnicos que, ao longo das duas últimas décadas do século XX e da primeira do século XXI, foram sendo construídos, experimentados, desenvolvidos e aperfeiçoados perante a necessidade de se estudar e editar dois importantes monumentos da cultura portuguesa que, mercê do tempo e da lei, ficaram quase em simultâneo à disposição dos filólogos: os espólios de Eça de Queiroz e de Fernando Pessoa.
Mercê do tempo e da lei — mas também, no que me diz respeito, mercê do acaso.
Porque foi quase por acaso que aqui vim parar — orientado que estava, no início dos anos de 1980, para o trabalho filológico sobre textos medievais, de que a edição e estudo dos documentos em português da Chancelaria de D. Afonso III viria a ser exemplo. Mas a atribulada publicação, em 1980, na sequência da nova legislação sobre a queda em domínio público dos direitos de autor, do suposto romance inédito de Eça de Queiroz a que deram o título (falso) de A Tragédia da Rua das Flores levou a que Ivo Castro me desafiasse para elaborar um estudo sobre tão infausto acontecimento — o que fiz e me deu muito gosto fazer. E, na sequência disso, Carlos Reis convidou-me para colaborar na edição crítica das obras de Eça de Queiroz, em cujo contexto desenvolvi um método de estudo e de edição crítico-genética, do qual resultaria uma tese de doutoramento e a edição crítica de A Capital!. Ao mesmo tempo, e igualmente de maneira atribulada, também Pessoa entrou em domínio público — e Ivo Castro, nomeado coordenador do projeto nacional de edição crítica de Fernando Pessoa, convidou-me para a sua equipa, onde trabalhei durante vários anos e em cujo contexto produzi os ensaios que aqui se reúnem e as edições de que adiante, pontualmente, vou dando conta.
Este é, portanto, um livro de descoberta e de relatos de processos sobre assuntos e problemas de filologia e de crítica textual aplicados aos manuscritos de Fernando Pessoa; e sobre a minha própria maneira de trabalhar nestas matérias. Ao mesmo tempo, acaba também por ser um documento — pequeno e pessoal, mas autêntico — sobre a maneira como se foi fazendo crítica textual — e sobretudo crítica textual genética — em Portugal, ao longo de um período curto mas intenso durante o qual tivemos que achar a melhor maneira de levar a bom fim uma tarefa em que, de certa maneira, fomos pioneiros.
Escritos entre 1987 e 2016, os textos que aqui se reúnem não foram pensados para um dia virem a integrar um livro: na verdade, eles foram escritos soltamente, e soltos foram sendo publicados ou de alguma maneira apresentados ao público — a maior parte deles como comunicações e conferências em congressos — com as diferenças de registo que as pessoas, os objetos e as circunstâncias, bem como o meu envolvimento afetivo e a minha própria maturidade, permitiram.
Nenhum mal viria ao mundo se eu deixasse ficar estes textos nos loca amoena onde até agora jaziam e a que originalmente se destinaram; porém, não tanto pelo seu mérito, mas pelo valor daquilo que na sequência do meu trabalho de investigação e de escrita terá sido possível revelar acerca dos papéis de que aqui falo, achei que deveria exumá-los e, sob a forma de livro e com as adaptações que o novo contexto aconselha (embora conservando algumas repetições, inevitáveis), trazê-los a um público mais alargado que também será, tendo em conta a passagem do tempo, um público novo.
É gostosamente devida, e aqui registada, uma palavra de reconhecimento aos meus companheiros dos tempos pioneiros da equipa Pessoa: Ivo Castro, Manuela Vasconcelos, João Dionísio, Joaquim Mendes, Luís Prista e José Nobre da Silveira. E à memória de Pedro da Silveira que, com muita frequência, nos entrava porta adentro trazendo uma nova miúnça, quase sempre oportuna, sobre Fernando Pessoa. E ainda aos técnicos e responsáveis da Biblioteca Nacional de Portugal que, por gosto e por ofício, foram presença constante no desenrolar destas cenas de uma história sem tempo que é a do trabalho do filólogo: de um modo especial, António Braz de Oliveira, Fátima Lopes, Júlia Ordorica, Aurora Machado e Maria Teresa Mónica.
Valete fratres atque sorores!