Considerado o representante mais genuíno do simbolismo português, Camilo Pessanha nasceu em Coimbra, a 7 de setembro de 1867 e morreu, em Macau, onde se encontra sepultado, a 1 março de 1926. Há 93 anos.
Apesar da pequena dimensão da sua obra, de onde se destaca claramente Clepsidra, Camilo Pessanha é tido como um dos grandes poetas da Língua Portuguesa.
Clepsidra, título simbólico que se refere a um relógio antigo, de origem egípcia, que media o tempo pelo escoamento de água num recipiente graduado, é o único livro de poemas de Camilo Pessanha e foi publicado pela primeira vez em 1920, graças aos esforços de Ana de Castro Osório. Depois, foi o filho desta, João de Castro Osório, que ampliou a obra inicial acrescentando-lhe poemas que entretanto foram encontrados. Com nítidas influências do simbolismo francês de Verlaine, Mallarmé e Baudelaire, a poesia de Camilo Pessanha é melancólica, extremamente musical — De la musique avant toute chose, como dizia Verlaine.
Clepsidra assume-se, pois, como um importante testemunho do acolhimento português da poesia europeia finissecular: o simbolismo articulado com a sensibilidade decadentista. É, na verdade, uma construção poética «cultivada como fragmento e representação difusa de uma realidade fugidia, a par do impulso para uma unidade remota, a consubstanciar na construção do livro». Trata-se, portanto, de uma obra que nos remete para as temáticas da efemeridade da vida, da perda, da inutilidade do que se faz ou se vive, da desistência, do receio e da ambiguidade.
Em julho de 2014, a Imprensa Nacional publicou Clepsidra na «Biblioteca Fundamental da Literatura Portuguesa», coleção coordenada por Carlos Reis, onde se procura divulgar grandes clássicos dando a conhecer autores que são fundamentais para a Literatura Portuguesa. Refira-se que esta publicação é baseada na edição crítica de Barbara Spaggiari, profunda conhecedora da poesia de Camilo Pessanha, dada à estampa pela editora Lello, em 1997.
Aqui a Nota Prévia de Carlos Reis, que abre esta edição.
A integração do volume Clepsidra, de Camilo Pessanha, na Biblioteca Fundamental da Literatura Portuguesa corresponde amplamente aos propósitos desta coleção, propósitos que são também indissociáveis dos públicos que com ela se pretende atingir. No quadro de uma missão que envolve uma inegável componente de salvaguarda patrimonial, a Imprensa Nacional-Casa da Moeda deu corpo à iniciativa de publicação, numa série especialmente concebida para o efeito, de um conjunto alargado de títulos da literatura portuguesa cuja importância literária nem sempre é acompanhada por iniciativas editoriais que facultem o acesso do leitor a esses títulos. Acontece assim no caso de não poucos dos textos que aqui vão aparecendo; curiosamente, tendo vivido um trajeto editorial um tanto atípico, o livro Clepsidra foi objeto, nos últimos anos, de uma atenção que, traduzida em edições de origem e qualidade desigual, não prejudica, antes reforça a legitimidade da publicação que agora surge; acresce a isto a vantagem (e também a segurança) de ser ela baseada na edição crítica que, em 1997, a editora Lello deu à estampa e que foi preparada por Barbara Spaggiari.
Profunda conhecedora da poesia de Camilo Pessanha, da sua história literária e da história editorial dos seus textos, Spaggiari elaborou, para esta edição, uma introdução e uma circunstanciada nota biobibliográfica que, cada uma à sua maneira, ajudam o leitor a entrar no denso, às vezes sombrio, mas sempre fascinante universo literário deste grande poeta português. Tendo protagonizado um percurso pessoal de descentramento e mesmo de relativo isolamento, designadamente pela sua experiência oriental, durante os anos em que viveu em Macau, Pessanha foi, como aconteceu com outros (Fernando Pessoa, que o admirou, é o caso mais conhecido), um poeta de notoriedade pública tardia. Depois do aparecimento de cerca de uma dezena e meia de poemas seus na revista Centauro, em 1916, por iniciativa de Ana de Castro Osório, Pessanha ficaria a dever a primeira edição de Clepsidra (e a única que em vida conheceu) à mesma zelosa editora, tendo-se aquela edição concretizado num singelo livrinho impresso em 1920. Seis anos depois, o poeta morria, ficando para a nossa história literária, tal como aconteceu com o grande Cesário Verde (que só postumamente foi editado em livro), como autor de um só livro.
E contudo, conforme o estudo introdutório de Barbara Spaggiari expressivamente mostra, bastou esse título para atribuir a Camilo Pessanha o lugar absolutamente crucial que ele detém na nossa literatura, em direta relação com o simbolismo europeu finissecular, nos primórdios do modernismo. Só as circunstâncias acidentais daquela publicação tardia, ocorrida já no século XX, aliadas aos acidentes de uma vida pessoal um tanto dispersa, explicam que este pareça um poeta tardio, relativamente aos movimentos poéticos de que em boa parte se nutriu a sua escrita poética. É dessa teia de ligações literárias que trata também a introdução que aqui pode ler-se.
Procedendo a um enquadramento epocal e periodológico minucioso, Barbara Spaggiari fundamenta nesse tempo muito fecundo, muito intenso e não raro dominado por afirmações provocatórias e por gestos de subversão a poética e a poesia de Camilo Pessanha, os temas que nela predominam e as opções técnicas que levaram à configuração de uma língua poética própria. Sem perder de vista os incidentes da biografia (bem caracterizados sobretudo na nota biobibliográfica), Spaggiari não esgota, todavia, na estreiteza de explicações «biografistas» os caminhos de leitura que aqui nos propõe. E assim, os grandes veios temáticos que atravessam Clepsidra dialogam com um contexto histórico-literário complexo e com uma estilística às vezes radicalizada em procedimentos que deliberadamente fugiam àquela que era, para Pessanha e para vários outros poetas do seu tempo e sintonizados com o seu ethos literário, a trivialidade da língua do vulgo. Ou seja, tudo o resto que ficava fora dos restritos limites da poesia concebida como «de la musique avant toute chose», como sobranceiramente dizia Verlaine, na famosa arte poética que enunciou num poema de Jadis et naguère (1884).
Camilo Pessanha não é certamente um poeta de grande público; hoje talvez pudéssemos dizer até, para usar uma expressão corrente, que se trata de um poeta de culto. A sofisticada e quase elitista complexidade que caracteriza os seus textos remete a sua poesia sobretudo para leituras e para leitores empenhados em estudar a literatura portuguesa na transição do século XIX para o século XX, incluindo-se nessa transição a emergência de um movimento com a relevância do modernismo; leituras e leitores com responsabilidades no sistema de ensino, designadamente professores de literatura portuguesa, estudantes e investigadores que careçam de um texto seguro e devidamente contextualizado, naqueles aspetos que já aqui foram referidos. E nem o facto de se saber que a existência social e a função formativa dos textos literários são hoje afetadas pela chamada crise das Humanidades — uma crise não raro afirmada com a cumplicidade de poderes políticos e corporativos que a acentuam, para além do que seria ética e culturalmente aceitável —, nem isso retira pertinência a edições como esta. Com ela contribui-se para reafirmar, tendo em conta o lugar cultural e também institucional que lhe cabe, o significado da poesia de um grande poeta português. Esse significado ostenta uma densidade que vale por si, para além ou para aquém de procedimentos de legitimação que esta série também assume.
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