O Voo da Borboleta
Hoje celebramos a poesia que José Luís Mendonça nos oferece no livro Um Voo de Borboleta no Mecanismo Inerte do Tempo, em boa hora editado pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda. Penso que é uma forma auspiciosa de entrarmos no Novo Ano.
Para além de poeta, Mendonça é ficcionista e jornalista, pelo que tem uma vasta e diversa produção literária. É mestre em Direito, foi adido cultural na UNESCO, em Paris, e diretor e redator-chefe do semanário “Cultura-Jornal Angolano de Letras e Artes”, durante sete anos. É professor universitário, membro da União de Escritores Angolanos e autor da refundação, em 2018, do Movimento dos Novos Intelectuais de Angola, defendendo (e passo a citá-lo) “o resgate pleno do legado dos precursores da Literatura angolana».
De um total de vinte e cinco livros, seis foram premiados, número que evidencia a projecção que tem como escritor:
– Chuva Novembrina (prémio Sagrada Esperança), 1981; Respirar as Mãos na Pedra (prémio Sonangol de Literatura), 1990; Quero Acordar a Alva (prémio “Sagrada Esperança”) 1996; Se a Água Falasse (primeiro prémio dos jogos florais do Caxinde), 1997; Um Voo de Borboleta no Mecanismo Inerte do Tempo (prémio “Angola Trinta Anos”, do Ministério da Cultura), 2006; Lenda da Mãe África e do Filho que Vendeu o Coração (prémio Jardim do Livro Infantil – INIC – Inst. Nac. das Indústr. Culturais), 2019.
Conheci José Luís Mendonça em 2004, há mais de 20 anos, na grande festa do livro que foi o I Encontro de Escritores Angolanos, que se realizou no Lubango, numa feliz iniciativa da Associação Cultural e Recreativa Chá de Caxinde, dirigida na altura por Jacques dos Santos, em parceria com a UEA – União de Escritores Angolanos. Recordo que a sessão de abertura foi presidida pelo ministro da cultura e também escritor, Boaventura Cardoso, tendo sido aberto o período das comunicações por José Luís Mendonça, com o tema “Literatura, Nação e História – a escrita como leitura e agente do processo histórico angolano”, um tema que lhe interessaria ao longo da vida.
Mendonça é natural da vila do Golungo Alto, no Kwanza Norte, vila bonita, arrumada e imersa numa cintura de vegetação exuberante e aveludada, centro de uma vasta região que chega aos Dembos, cuja principal riqueza foi, e julgo que ainda seja, o café. E o Golungo Alto, para além do que se disse, deve ter um mistério qualquer, uma atracção especial, pois há quem queira, mesmo não sendo dali, assumir que o teve por berço.
Para além do Mendonça, nesta vila nasceram destacadas figuras da cultura angolana, de entre as quais destacamos Mário Pinto de Andrade e Manuel Pedro Pacavira. Pois foi aqui, nesta terra de escritores, do café e de mitos, que o nosso Luís Mendonça viria ao mundo, em novembro de 1955, trinta e um anos depois do poeta António Jacinto (1924), destacado membro da geração da Mensagem e do Movimento de Novos Intelectuais de Angola (Estão a ver a ligação entre os dois?).
Pois, de tanto gostar desta terra, António Jacinto fez crer a muita gente e durante bastante tempo, que o seu berço era mesmo o Golungo Alto. Rendido à terra do café e aos seus dramas, António Jacinto escreveu (e o Rui Mingas cantou como ninguém) Monangambé, um dos poemas mais emblemáticos da literatura de Angola:
“Naquela roça grande
não tem chuva
é o suor do meu rosto
que rega as plantações
Naquela roça grande
tem café maduro
e aquele vermelho-cereja
são gotas do meu sangue
feitas seiva…”
Apesar de comummente se considerar que a ficção está mais ligada à narrativa e que a poesia é outra coisa, eu acho que é precisamente na poesia que se ficciona mais. É um campo sem fronteiras e de margens imagéticas sem termo. Em muitas situações a poesia é totalmente ficção, a qual se pode estender ao próprio autor, permitindo-lhe escolher-se. Até o lugar de nascimento dos poetas é, muitas vezes, ficcionado. Será que Mendonça, como Jacinto, não ficcionou também o seu lugar de nascimento? Outros são os lugares onde Mendonça, o poeta, pode ter nascido, como “No roteiro versátil do mar [da] da rota das Índias” (Logaríntimos da alma, 1998, p. 74), nos “cafezais silenciosos do cacimbo e à sombra das grandes mafumeiras” das margens do rio Kwanza (Angola, me diz ainda, 2018, p. 54), sobre
“a seda branca do rio na queda de kalandula” que o rio Lucala oferece perto de Malange, (Software carnal, 2020, p. 39) ou sobre o dorso de “bois-cavalos selvagens [que] cavalgavam na aljava do khoisan” (Software carnal, p. 18), ou no “oásis perdido na juba insulina da welwitschia mirabilis”, no deserto do Namibe, uma “luz sonâmbula em flor […], luz cândida de areia nos joelhos do fim do mundo […]”. (Um voo de borboleta, 2024, p. 38).
José Luís Mendonça inscreve-se no grupo de poetas da década de 80 do séc. XX, autores ainda marcados pela ideologia política e pelas experiências catastróficas vividas na década precedente (convulsões de 74/75, repressão pós 27 de Maio de 1977, guerra civil), que procuraram uma nova visão lírica “a partir de alguma fenda original”, como escreveu Ruy Duarte de Carvalho.1 Autores que, após o desmoronamento do projecto social colectivo, iniciam o afastamento de uma escrita apologética e de exaltação da luta de libertação nacional.
Pese embora a desconfiança ou o cansaço em relação às questões sociais, alguns dos poetas desta geração continuaram a manifestar, em verso, a sua amargura e revolta perante as novas contradições sociais em que o povo angolano submergia. A resistência (agora diferente da que enformou a poesia anterior) é, pois, um dos sinais mais evidentes da nova poesia angolana, cujos autores usam recursos humorísticos e satíricos, trilhando também os caminhos do erotismo e da metalinguagem, dos mitos e dos sonhos.2 Foi a “geração das incertezas”, na classificação de Luís Kandjimbo, a que assegurou a transição de um período cuja temática poética circundava em torno do nacionalismo angolano – poética militante e de denúncia – para uma outra, muito mais heterogénea, com uma componente temática mais cosmopolita e, em algumas situações, mais próxima da tradição oral.3 A poesia transforma-se rumo a um processo de interiorização em que o amor também é tema de muitos poemas, alguns dos quais publicados numa curiosa e breve antologia, intitulada Poesia Angolana de Amor dos anos 80, organizada por Lopito Feijóo.4 Desta antologia faz parte José Luís Mendonça, entre outros, que o organizador da antologia diz pertencerem à geração de poetas que “emergiram numa sociedade híbrida e cheia de indecisões” e que passaram a escrever – desiludidos, mas decididos – textos que, para além de reflectirem os múltiplos problemas que a sociedade enfrentava, não fogem aos temas de amor.
De facto, assim acontece com José Luís Mendonça, um dos poetas que cedo se inicia nos cânticos do amor com Chuva novembrina (1981), livro com poemas escritos, sobretudo, entre 1978 e 79, no qual ele é o primeiro, no dealbar da década de 80, a retomar e a prosseguir a tradição amorosa de David Mestre, não renunciando a escrever e a dar a ler poemas de grande sensualidade. Provavelmente será o primeiro desses poetas a apresentar trechos que transbordam de erotismo, como se pode ver, mesmo ao de leve, no poema “O amor”, que agora se dá por outro nome “Assim arde a matéria” (Um voo de borboleta…, 2024, p. 54):
“Eu seguro as tuas coxas
e bebo em teu rio-oiro
essa beleza azul da água
smorzando
a virilha inédita
da minha terra natal.
Penetro nela como um furacão
amortecido pela seca estação.
Assim arde a matéria:
na sanga quebrada da paixão
nossos lábios feridos / de ternas melodias.”
Mendonça continua a ser autor, a par de poemas exaltados de interrogação e denúncia, de “poemas de amar”, dos que nos chegam dos “lugares íntimos da alma” e até dos que podem ser um estranho e sugestivo “software carnal”, permitindo-se carregar “até à eternidade / a amora azul do beijo” de uma mulher “para recordar a qualquer hora como o sapo / dentro da lama dos [seus] dedos reproduz / o chuvisco de setembro.” E confessa-nos uma mulher inventada, e real, no “voo de borboleta”, revelando-nos uma “mulher poema / rio de zinco azul / içado até ao cardume […]. // Mulher poema, garça sem rumo / numa praia de calça de ganga / placenta luminosa / de uma entrega sem troca.”5 Mulher com quem tem conversas muito sérias “no palco natural da pele com a boca cheia de dongos / ancorados no porto de águas profundas do púbis […]“,6 ou outra, e a mesma, que canta num soneto “o verão dos […] seios [dela] / [que] belisca de leve os lábios [dele]”.7
Todo este despojamento, este revelar de alma, se encontra nesta “selecta literária” (que é como o A. prefere designá-la), a “crisálida” de onde nos chega o “aroma dos frutos”, seguindo o “voo da borboleta”, cuja trajectória é “um sonho eterno no mecanismo inerte do tempo”, como diz o poeta.
Estamos, pois, perante o resultado de uma selecção criteriosa que o autor fez da sua própria produção lírica e que inclui poemas publicados no seu primeiro livro Chuva Novembrina (1981) até aos poemas que a sua gaveta (física ou etérea) guardou inéditos até hoje. Esta antologia recebe o mesmo título de um livro publicado em 2006 e com o qual inicia o capítulo que vai da pág. 77 à 97. Chamei-lhe capítulo à falta de melhor, pois esta classificação não se encontra lá, embora implicitamente se assuma uma orientação cronológica dos poemas (dos mais antigos para os mais recentes) e uma presentação em conjuntos, o que permite “anotar as possibilidades de evolução da arte do poema”, como se informa na introdução do livro.
Há, no entanto, excepções, como a do livro Desassobio, que aqui aparece “insularizado” (termo do autor) a partir da pág. 159 da antologia, já que tem um estilo diferente dos demais, mais inscrito no estilo da poesia de intervenção, destinado a ser, segundo expressa o autor, “um ataque verbal ao sistema que perpetua o sofrimento dos angolanos”. Vale a pena, até porque estamos em Lisboa, ler/ouvir o poema Fado (Um voo de borboleta, p.163- 164):
Porque nos deixaste, Portugal
arder na mão da Guerra Fria
quando podias ter-nos deixado
com as armas do voto no dedo
indicador da Paz que a independência
qualquer independência pressupõe?
Porque cantaste, Portugal
estórias da carochinha
aos teus filhos aqui nascidos
para depois construíres a ponte
de culpa e dor contornando
as utopias montadas dentro
do «ilustre peito lusitano»?
Porque não quiseste, Portugal
dos «heróis do mar, nobre povo»
levantar o esplendor da nova Angola […]?
Porque nos deixaste, Portugal
teu fado de tormentas como herança
«contra os canhões, marchar, marchar»
para além do Cabo Bojador?
Acontece ainda, que neste conjunto de poemas, são incluídos alguns poemas do livro Angola, Me Diz Ainda, o qual, confessa-nos Mendonça, se trata de um livro (e passo a citá-lo) “que está em vias de reciclagem e deverá sair com o título que aqui a reproduz na sua fragmentação.” (p. 12). Neste livro encontra-se um poema, que não passou para a antologia, mas que não consigo deixar de referir, “Canção de Roda no Morro Bento”
“Noites de sol ardente ao meio dia
na encosta do Morro Bento
anda no ar uma canção de roda…”
(Angola, me diz ainda, p. 40), poema dedicado a Mário António que, como todos sabem, escreveu um dos poemas mais representativos do imaginário luandense, cantado por Rui Mingas e que serviu de modelo a este de Luís Mendoça.
Noites de luar no morro da Maianga.
Anda no ar uma canção de roda […] homens embebedando-se nas tabernas;
e os emigrados das ilhas […] os homens,
os homens,
as tragédias dos homens.
Só por isto se percebe a importância dos poetas, dos poetas grandes como Mário António e José Luís Mendonça (grandes, mas tantas vezes incompreendidos…), aqui irmanados na poesia da terra, na poesia dos homens, nas tragédias dos homens, inventando estórias com as palavras certas que os grandes da música dão voz para cantar, para nos cantar.
A poesia de José Luís Mendonça – assumida pelo autor – é que o texto nunca está em definitiva forma, pois o poema é como a vida, transforma-se a cada passo, ganha novos rostos. E isso é patente em muitos poemas desta selecta literária, em que a poesia vai no sentido de uma permanente remodelação estética, demarcada pelo modernismo e pelas poéticas experimentais, como podemos ver no poema “Subpoesia” (Um voo de borboleta, 2024, p. 39):
Subpoesia
Subsaarianos somos
sujeitos subentendidos
subespécies do submundo
subalimentados
somos
surtos de subepidemias
sumariamente submortos
do subdólar somos
subdesenvolvidos assuntos
de um sul subserviente.
Ou o caso de “Poesia Verde”, poema presente na antologia (a p. 29) e dedicado a Carlos Drummond de Andrade:
Poesia Verde
No meio do caminho nunca houve uma só pedra
As pedras nascem na boca e a boca é o seu caminho
Das pedras que comemos as cidades ainda falam pelos cotovelos da noite
Não eram pedras com cabeça tronco e sexo
Pariram fábricas de pedras montadas sobre a língua
E as pedras comeram a pedra que restou no meio do caminho. (a p. 29 da Antologia)
Nesta sua “seleta literária”, Mendonça efetua uma escolha de textos que considera serem os de maior qualidade e reveladores de maior inovação temático-formal. Trata-se, pois, de “um livro dos seus livros”, abarcando dezanove títulos que são o resultado de quarenta e dois anos de labor poético, uma antologia que a Imprensa Nacional-Casa da Moeda (e cito o A.) “derrama à vista do leitor o trigo joeirado” […], o fruto do suor semântico da terra […]”, o resultado depurado “de uma oficina excretada pela osmose pulsante do telúrico rim desta palavra África”, que a seleta literária que hoje se apresenta ao público.
Chegados aqui, valerá a pena lembrar que, antes deste livro, houve outro, também editado pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda (INCM), em 2002, intitulado Um Canto para Mussuemba, título retirado de um poema que Mendonça dedica a sua avó, Isabel dos Santos, e com o qual dou por terminada esta apresentação:
“Ó mãe dos gafanhotos
sentados na lavra da boca deserta:
quantos comboios pariu a tua fome
sobre tijolos gravados ao corte da língua?
O abecê do tempo sangra no pilão
e a chuva de abril nos cafeeiros
é a mulher kilombo, dizem
morreu um leão no fogo do teu ventre
onde caminhei de animais na mão.”8
Jorge Arrimar
–
- 1. Ruy Duarte de Carvalho. In: Poesia africana de língua portuguesa. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2003, p. 45.
- 2. Carmem Tindó Ribeiro Secco – “Sendas de sonho e beleza: reflexões sobre a poesia angolana de hoje”. Ovi-sungo:treze poetas de Angola; organização, selecção e notas de Claudio Daniel. São Paulo: Lumme Editor, 2006, p. 14-25. Esta autora confirma que alguns dos vectores da produção poética angolana das últimas décadas são a “transgressão, errância, desafio, eroticidade, metalinguagem e desconstrução”.
- 3. Jorge Arrimar – “Literatura Angolana: algumas achegas para a sua interpretação”. Seixo Review, Outono 2005, nº7, p. 91-95.
- 4. Lopito Feijóo – “Poesia Angolana de amor dos anos 80 (Breve antologia)”. Cadernos do Povo: revista internacional da lusofonia, 1991, nº 19-22, p. 13-42. Convénio de Cooperação Cultural entre as Irmandades da Fala da Galiza e de Portugal e a União dos Escritores Angolanos, assinado a 19 de fevereiro de 1992, em Santiago de Compostela, Galiza.
- 5. “Mulher poema” in: Um voo de borboleta…, 2024, p. 95
- 6. “Arco-Íris” in: Software carnal, 2021, p. 30.
- 7. “Soneto” in: Um voo de borboleta…, 2024, p. 109.
- 8. “Um canto para Mussuemba” in: Um voo de borboleta…, 2024, p. 72.