“Página de saudade
Porquê?…Para quê?…
Ainda agosta, já a meses de distancia do atentado cruel que vitimou, não compreendo, nem explico as razões que determinaram o acto criminoso.
Porquê? Para quê?
Luís Derouet foi toda a sua vida a personificação da bondade. As amizades que desde as primeiras horas de iniciação da luta contraíra, manteve-as fiéis até ao minuto derradeiro. Esta a folha corrida do seu coração [sic.].
Tinha a bonomia afectuosa, contagiosa dos caracteres íntegros e das almas sem mácula, vivendo para o árduo labor do dia a dia, para a família e para os amigos, Trabalhou com denodo, ergueu o seu lar com exaltadas esperanças, nimbando-o de solicitude e carinho, e abriu sempre, confiante e prodigo, os braços a quantos o procuravam.
Era destas pessoas que viviam contentes apenas com a satisfação de ordem moral. Um sorriso da filha, o simples aperto de mão de um conhecido enchiam-lhe as horas negras de canseiras de clarões rutilantes.
Como todas as almas bem dotadas, tinha fé na vida, acreditava nos outros, e se o desanimo lhe bateu algum dia à porta da esperança, não se transformou nunca em azedume e em cólera, que tantas vezes geram atitudes de revolta. Por onde passou e obteve postos de comando a sua autoridade alicerçava-se na harmonia. Ordenava convencendo primeiro. A única ditadura que exerceu foi a da persuasão.
Num meio e numa hora de tão corrosivos cepticismos, de tão acentuada degradação cívica, em que cada qual pensa poder erguer o facho de desvairados ideais sobre ruinas e escombros, num meio e numa hora em que há a voluptuosidade colectiva da destruição, Luis Derouet era um organizador, um construtor, uma vontade ao serviço da disciplina e do método.
Mantive com Derouet as mais constantes, e intimas relações. Durante muitos anos a nossa convivência foi, pode dizer-se, quase diária, pois rara seria a noite em que nos não reuníamos em torno da mesma mesa de redacção, ele no trabalho exaustivo de secretariar o jornal, eu na colaboração efectiva da secção de teatros.
A ambos esse assunto interessava então, e, durante muito tempo também, ele se deixou enlevar e atrair pelas cronicas dos espectáculos. Do vasto espólio do jornalista constam múltiplos artigos de critica dramática em que a visão das peças e dos artistas do seu tempo se humedece de tintas compassivas e de conselhos justos.
Se os que trabalham lhe mereceram sempre coadjudação e respeito, era ainda a bondade que lhe ditava os rápidos comentários e lhe conduzia a pena para amparar certas indecisas sugestões de beleza.
Nunca da sua boca saíram palavras de odio, pois ignorava a agressão e a violência, e quantas vezes, também, ao entregar-lhe as folhas manuscritas, chamava a minha atenção para uma frase acaso mais dura, para uma anotação mais áspera, para um qualificativo mais agreste, dado que nem sempre à hora alta da noite, à hora tardia de lançar vertiginosamente ao papel as dispersadas impressões recolhidas, eu tivera tempo de pesar as palavras de limar arestas, de amortecer sequer a tantas vezes enfastiada emoção contrariante. Compulsem-se essas paginas, releiam-se esses artigos e ver-se-á como o jornalista sabia dominar os nervos, corrigir primeiros excessos pela ação lustral do temperamento, dando consolações onde outros poriam severas reprimendas, dando esperanças onde tantos, desiludidos, púnhamos tédio. Era esse o seu jeito e a nobre expressão do seu caracter.
Por estas razões, ainda agora, a alguns meses já de distancia do atentado cruel, que o vitimou, não compreendo, nem explico quais as determinantes do acto criminoso.
– Porquê? Para quê?…
Santos Tavares
Estocolmo 25 de Março de 1928”