Apresentação do livro “O Essencial sobre José Saramago”
«A GLOBALIZAÇÃO DE ROSTO HUMANO» — Ciclo de Conferências
Apresentação do livro “O Essencial sobre José Saramago”
«A GLOBALIZAÇÃO DE ROSTO HUMANO» — Ciclo de Conferências
- Cultura
- Entrevistas
Luiz Fagundes Duarte em entrevista — «Fico inquieto por saber que há poesia e diários de Nemésio que não se podem consultar»
Por: Tânia Pinto Ribeiro
Costuma dizer aos seus alunos que Portugal é um país de um homem só. Quando temos Fernando Pessoa todos os outros desaparecem. O que considera injusto. Até porque já se apercebeu de que aquilo que Pessoa tem — e que faz dele um grande poeta — Antero de Quental também já tinha. «Hoje em dia todos falam de Pessoa, que já é um ícone para turistas, chegamos às livrarias e só encontramos a Lisboa de Pessoa ou os cafés de Pessoa e por aí fora… Tudo o resto fica na penumbra.»
É nesse grupo, entre a sombra e a meia-luz, que se insere Vitorino Nemésio, autor daquele que é provavelmente o maior romance da primeira metade do século XX português: Mau Tempo no Canal, cujo enredo se situa no pequeno universo de umas ilhas remotas, entre vulcões e lagoas, perdidas no tempo e no coração do oceano. Nestas cerca de 500 páginas, Nemésio mostra-nos que a identidade humana, a humanidade, é a mesma. «As pessoas têm alegrias, têm tristezas, têm ciúmes, têm dores, têm exaltações… Nemésio consegue reproduzir o drama humano, a comédia humana, se quisermos, que tem os mesmos cambiantes seja em que parte do mundo for, utilizando referências açorianas. O resto é paisagem, é cenário.» Daí a universalidade e força desta obra.
Mas diz-nos Luiz Fagundes Duarte que é no terreno fértil da poesia que encontramos um grande Nemésio. «Ele é poeta durante 60 anos!» Nemésio, de facto, nunca pôs de lado a poesia — atividade ininterrupta entre 1916 e 1976. E é, precisamente, com a poesia que se vai inaugurar a nova coleção «Obra Completa de Vitorino Nemésio», numa profícua — e simbólica — parceria entre as editoras Companhia das Ilhas, sediada nas Lajes do Pico, e a Imprensa Nacional, «[n]uma atitude inteligente de ambas as partes», segundo Luiz Fagundes Duarte — que ficou com o pelouro da coordenação editorial da coleção. Luiz Fagundes Duarte estruturou esta nova coleção em quatro séries: Poesia, Teatro e Ficção, Crónica e Ensaio, uma forma de mostrar a obra ampla e multifacetada que Nemésio nos deixou. A ideia é criar uma «coleção simples, sem aparato, rigorosa do ponto de vista do texto e que seja agradável para um público que não está — nem tem de estar — habituado a ler edições eruditas».
Todavia, até 2028, ano em que se cumprem os 50 anos da morte do autor, continuará inacessível poesia e outros escritos inéditos de Nemésio. «Uma parte do espólio de Vitorino Nemésio está sob reserva na Biblioteca Nacional. Alguém que não foi o autor — e que segundo as minhas informações foi David Mourão-Ferreira, com as competências que tinha na altura — entendeu que aqueles papéis deveriam ficar sob reserva.» Um poder que não se sabe se foi conferido pelo próprio Nemésio ou se pelos herdeiros deste.
Diz que inserir Nemésio numa escola seria ir contra a sensibilidade dele. «O Nemésio é um académico que vai reagindo ao mundo em que vive num determinado contexto. Ele não é apologético, não é missionário de uma determinada bandeira. Mas é evidente que tem dimensões na sua criatividade que podem chegar um pouco ao neorrealismo, até ao simbolismo e algumas coisas até ao surrealismo.» Já encontrar-lhe um símbolo é mais inteligível. Nemésio gostava muito de interagir com poetas populares da ilha Terceira, que, segundo Luiz Fagundes Duarte, são pessoas extremamente elegantes no trato, na educação e muito autênticas, um pouco à medida de Nemésio. «Debaixo da farpela do professor universitário continuava a ser uma pessoa do povo, uma pessoa autêntica.» E por isso Luiz Fagundes Duarte escolheria o «cantador popular» e a «viola regional da ilha Terceira» como símbolos do poeta.
Luiz Fagundes Duarte também é açoriano, da ilha Terceira, mas disse-nos que a geografia não foi determinante na aproximação à obra nemesiana. Mas está sempre presente no coração de um açoriano. «A geografia limita, é verdade, condiciona também, é verdade, mas também é verdade que serve de motor para que as pessoas criem mecanismos para a ultrapassar sem a abandonar.»
Luiz Fagundes Duarte é também filólogo e professor de Literatura na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa. Colaborou no projeto de edição crítica da obra de Eça de Queirós, fez parte da Equipa Pessoa, dirigiu o projeto de estudo e edição do espólio de José Régio, editou a poesia de Antero de Quental e, claro, de Vitorino Nemésio. Também já desempenhou funções políticas na área da educação. E tem uma visão muito clara quanto à escola do futuro: «Gostava que existisse daqui a umas décadas uma escola que acabasse com as disciplinas, porque o conhecimento não está em gavetas.» Luiz Fagundes Duarte imaginou uma escola «onde os meninos têm uma educação sistémica», como na Finlândia, por exemplo. Para lá chegar, diz, é «preciso mudar muitas cabeças». Foi o que fez Nemésio na sua longa carreira nas salas de aula. Reza a história que os alunos ficavam fascinados…
Por: Tânia Pinto Ribeiro
Costuma dizer aos seus alunos que Portugal é um país de um homem só. Quando temos Fernando Pessoa todos os outros desaparecem. O que considera injusto. Até porque já se apercebeu de que aquilo que Pessoa tem — e que faz dele um grande poeta — Antero de Quental também já tinha. «Hoje em dia todos falam de Pessoa, que já é um ícone para turistas, chegamos às livrarias e só encontramos a Lisboa de Pessoa ou os cafés de Pessoa e por aí fora… Tudo o resto fica na penumbra.»
É nesse grupo, entre a sombra e a meia-luz, que se insere Vitorino Nemésio, autor daquele que é provavelmente o maior romance da primeira metade do século XX português: Mau Tempo no Canal, cujo enredo se situa no pequeno universo de umas ilhas remotas, entre vulcões e lagoas, perdidas no tempo e no coração do oceano. Nestas cerca de 500 páginas, Nemésio mostra-nos que a identidade humana, a humanidade, é a mesma. «As pessoas têm alegrias, têm tristezas, têm ciúmes, têm dores, têm exaltações… Nemésio consegue reproduzir o drama humano, a comédia humana, se quisermos, que tem os mesmos cambiantes seja em que parte do mundo for, utilizando referências açorianas. O resto é paisagem, é cenário.» Daí a universalidade e força desta obra.
Mas diz-nos Luiz Fagundes Duarte que é no terreno fértil da poesia que encontramos um grande Nemésio. «Ele é poeta durante 60 anos!» Nemésio, de facto, nunca pôs de lado a poesia — atividade ininterrupta entre 1916 e 1976. E é, precisamente, com a poesia que se vai inaugurar a nova coleção «Obra Completa de Vitorino Nemésio», numa profícua — e simbólica — parceria entre as editoras Companhia das Ilhas, sediada nas Lajes do Pico, e a Imprensa Nacional, «[n]uma atitude inteligente de ambas as partes», segundo Luiz Fagundes Duarte — que ficou com o pelouro da coordenação editorial da coleção. Luiz Fagundes Duarte estruturou esta nova coleção em quatro séries: Poesia, Teatro e Ficção, Crónica e Ensaio, uma forma de mostrar a obra ampla e multifacetada que Nemésio nos deixou. A ideia é criar uma «coleção simples, sem aparato, rigorosa do ponto de vista do texto e que seja agradável para um público que não está — nem tem de estar — habituado a ler edições eruditas».
Todavia, até 2028, ano em que se cumprem os 50 anos da morte do autor, continuará inacessível poesia e outros escritos inéditos de Nemésio. «Uma parte do espólio de Vitorino Nemésio está sob reserva na Biblioteca Nacional. Alguém que não foi o autor — e que segundo as minhas informações foi David Mourão-Ferreira, com as competências que tinha na altura — entendeu que aqueles papéis deveriam ficar sob reserva.» Um poder que não se sabe se foi conferido pelo próprio Nemésio ou se pelos herdeiros deste.
Diz que inserir Nemésio numa escola seria ir contra a sensibilidade dele. «O Nemésio é um académico que vai reagindo ao mundo em que vive num determinado contexto. Ele não é apologético, não é missionário de uma determinada bandeira. Mas é evidente que tem dimensões na sua criatividade que podem chegar um pouco ao neorrealismo, até ao simbolismo e algumas coisas até ao surrealismo.» Já encontrar-lhe um símbolo é mais inteligível. Nemésio gostava muito de interagir com poetas populares da ilha Terceira, que, segundo Luiz Fagundes Duarte, são pessoas extremamente elegantes no trato, na educação e muito autênticas, um pouco à medida de Nemésio. «Debaixo da farpela do professor universitário continuava a ser uma pessoa do povo, uma pessoa autêntica.» E por isso Luiz Fagundes Duarte escolheria o «cantador popular» e a «viola regional da ilha Terceira» como símbolos do poeta.
Luiz Fagundes Duarte também é açoriano, da ilha Terceira, mas disse-nos que a geografia não foi determinante na aproximação à obra nemesiana. Mas está sempre presente no coração de um açoriano. «A geografia limita, é verdade, condiciona também, é verdade, mas também é verdade que serve de motor para que as pessoas criem mecanismos para a ultrapassar sem a abandonar.»
Luiz Fagundes Duarte é também filólogo e professor de Literatura na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa. Colaborou no projeto de edição crítica da obra de Eça de Queirós, fez parte da Equipa Pessoa, dirigiu o projeto de estudo e edição do espólio de José Régio, editou a poesia de Antero de Quental e, claro, de Vitorino Nemésio. Também já desempenhou funções políticas na área da educação. E tem uma visão muito clara quanto à escola do futuro: «Gostava que existisse daqui a umas décadas uma escola que acabasse com as disciplinas, porque o conhecimento não está em gavetas.» Luiz Fagundes Duarte imaginou uma escola «onde os meninos têm uma educação sistémica», como na Finlândia, por exemplo. Para lá chegar, diz, é «preciso mudar muitas cabeças». Foi o que fez Nemésio na sua longa carreira nas salas de aula. Reza a história que os alunos ficavam fascinados…
PRELO (P) — Como nasceu a ideia desta nova coleção da obra completa de Vitorino Nemésio?
LUIZ FAGUNDES DUARTE (LFD) — Apesar de a Imprensa Nacional já ter publicado — e bem — as «Obras Completas de Vitorino Nemésio», a edição existente não era popular, não tinha acesso ao grande público nem o grande público tinha acesso a ela. E, então, nasceu esta ideia de se criar uma coleção simples, sem aparato, rigorosa do ponto de vista do texto e que seja agradável para um público que não está — nem tem de estar — habituado a ler edições eruditas e que possa ter acesso a obras de grande qualidade. Desejavelmente, o público alvo desta coleção são aqueles leitores indiferenciados. Um público que gosta de ler, digamos a população média portuguesa. Aí as escolas e o próprio Ministério da Educação devem criar também condições para que Nemésio e outros autores apareçam nos programas de leitura dos jovens. Na minha opinião ele já é, mas não é na opinião pública em geral, um dos grandes poetas portugueses do século XX.
P — As novas gerações de leitores parecem de facto desconhecer Nemésio. Acha que a «culpa» é apenas dos professores que não incentivam à leitura de Nemésio ou também do mercado livreiro?
LFD — Acho que é um problema da nossa sociedade, que nunca foi nem nunca esteve propriamente empenhada na questão da leitura. É preciso lembrar que no final do século XIX os países do sul da Europa tinham taxas de analfabetismo na ordem dos 80, 90%, e os países nórdicos era precisamente o contrário, tinham taxas de alfabetização na ordem dos 90 e tal por cento. E porquê? Temos de traçar um paralelo, norte-sul, no que respeita a religião. Nos países protestantes a leitura da Bíblia era obrigatória. As pessoas tinham de saber ler. Nos países do Sul, não. A missa era dada em latim e pronto. Temos um fator cultural histórico muito forte que tem o argumento religião como fronteira. Em Portugal nunca se valorizou a leitura. Lembro-me que os grandes livros que li, li-os com 14, 15 anos e hoje quando os volto a ler descubro sempre coisas diferentes. O facto é que os li em miúdo. Os meus pais valorizavam a leitura. Mas no contexto social à volta achavam que eu era um bicho do mato porque em vez de estar a jogar à bola na rua estava a ler. A leitura nunca foi valorizada socialmente em Portugal. É uma tradição histórica que nunca foi ultrapassada. A sociedade tem de mudar, a escola tem de perceber isso — faz o que pode mas tem de fazer mais. Não sei como mas tem. O que é facto é que eu chego a Paris ou a Londres ou a Pequim ou a Nova Iorque, entro no metro e vejo as pessoas a ler. E temos também de encontrar condições para que os autores sobrevivam, por isso é que também fazemos estas coleções. Há também o aspeto da distribuição. Por exemplo, os livros da Imprensa Nacional não aparecem nas livrarias «normais». As pessoas que moram em cidades onde não há livrarias da Imprensa Nacional não podem comprar livros da Imprensa Nacional. Eles não estão no mercado. Ou seja, há questões culturais, sociológicas de fundo, mas as entidades também têm de arranjar forma de disponibilizar os seus livros.
P — Na família de Nemésio lia-se a Bíblia. Ele próprio diz que nasceu «numa família católica, não beata mas muito assídua na prática litúrgica». Em O Pão e a Culpa (1955) ou em o Verso e a Morte (1959) percebemos esta dimensão.
LFD — Ao longo da vida, Nemésio discute questões religiosas. No final da vida, ele tem episódios que têm que ver com a aproximação do fim, o que virá depois… mas que não se podem considerar uma gaveta do religioso. Até porque do ponto de vista (e ponho aqui todas as aspas) do «catolicismo» a vida dele era altamente pecaminosa! Ele tinha a sua mulher, mãe dos seus filhos, e tinha muitas relações extraconjugais. Portanto, diria que essa dimensão é muito relativa.
P — Teve dificuldades em organizar esta coleção ou foi sempre um projeto muito claro?
LFD — Foi sempre um projeto claro. Defendo que as pessoas têm uma história de vida. E, no caso do Nemésio, para se perceber a grande poesia de livros como O Pão e a Culpa, Comovido a Oeste… é importante dar-se a conhecer também aqueles poeminhas que ele escreveu quando tinha 15 ou 16 anos, como os da Nave Etérea ou do Canto Matinal. Esta ideia presidiu ao desenho da coleção…
P — … que publica em 1916. Um livro que era para se chamar Canto Vesperal…! Foi graças a um professor, Ferreira Deusdado, que mudou o título. E que poesia era esta do Nemésio dos 16 anos?
LFD — Exatamente! É uma poesia imatura. Compreensivelmente, pois ele tinha 15 ou 16 anos quando a escreveu. Curiosamente, já no fim da vida ele vai recuperar de memória poemas que tinha feito quando era adolescente e vai dar-lhes o carimbo da autoridade de um grande catedrático. Há um caminho que se faz em que o autor vai crescendo. No caso de Nemésio, logo entre 1920 e 1924, com a ida dele para a Universidade de Coimbra, dá um salto enorme em termos de maturidade.
P — A coleção que se vai iniciar é fruto da parceria entre a Companhia das Ilhas, sediada nas Lajes do Pico, e a Imprensa Nacional-Casa da Moeda. Para si, quais as principais vantagens desta dupla chancela? Uma será claramente simbólica…
LFD — Acho que é uma atitude inteligente de ambas as partes. Tem-se aquela ideia de que a Imprensa Nacional é uma instituição pesadíssima, onde é preciso chegar através de muitas manobras, e o facto de agora estar a fazer estas parcerias com pequenas editoras privadas é bom para todas as partes. A Imprensa Nacional tem condições que as outras editoras não têm — e ainda bem — e isto contribui, de certa maneira, para a dinamização de editoras mais pequenas, que ainda vão conseguindo resistir aos monopólios que estão cada vez mais a marcar o seu território. As pequenas editoras recebem um certo élan para poderem continuar. A ideia inicial desta coleção era só para a Companhia das Ilhas. A Companhia das Ilhas são duas pessoas, marido e mulher, que com muito esforço, nas Lajes do Pico, uma vila com 1500 habitantes no meio do mar, conseguem manter uma editora e publicam bastantes livros.
P — Nemésio nunca pôs de lado a poesia. É uma atividade ininterrupta entre 1916 e 1976. É por este motivo que vamos inaugurar esta nova coleção com um volume de poesia?
LFD — Ele é poeta durante 60 anos! Quando se pensa na obra de Vitorino Nemésio pensamos em alguns livros de poesia e em Mau Tempo no Canal. Depois há aqueles pequenos livros que desapareceram, também por não haver edições. Achei que era importante haver uma coleção que se chama «Obra Completa de Vitorino Nemésio» e estamos a falar da obra completa que foi publicada. Achei também importante dar-se ao leitor uma noção da construção do autor Vitorino Nemésio. Ao mesmo tempo não podemos separar em caixas o Vitorino Nemésio-poeta, o Vitorino Nemésio-ficcionista, o Vitorino Nemésio-ensaísta… Decidi estruturar a coleção por uma ordem cronológica.
P — Fale-nos um pouco da estrutura da coleção.
LFD — Defini a coleção em quatro séries: Poesia, Teatro e Ficção, Crónica e Ensaio. Publicaremos quatro volumes por ano, um de cada série. O primeiro volume será de poesia e o segundo volume será composto pelos contos O Paço do Milhafre e O Mistério do Paço do Milhafre e pela única peça de teatro de Nemésio: Amor de Nunca Mais.
P — Alguma vez esteve em palco o Amor de Nunca Mais?
LFD — Esteve em 1920 em Angra do Heroísmo. E quando era adolescente lembro-me de um grupo de teatro amador da ilha Terceira representar a peça.
P — Tem esperança de que com esta nova edição essa possibilidade possa ganhar fôlego outra vez?
LFD — Suponho que uma boa dramaturgia com um bom trabalho de encenação era capaz de retirar daqui alguma coisa interessante. Acontece que é uma peça de um miúdo de 19 anos que provavelmente não fazia ideia de que existia uma revista Orpheu nem um Fernando Pessoa ou um Almada Negreiros. Não estava nada dentro desses contextos futuristas e revolucionários no que à literatura diz respeito. É uma peça de teatro, de certa maneira escrita por afirmação pessoal, cujo modelo que tinha era aquele teatro de salão, de sociedades para os meios pequeno-burgueses não muito exigentes. Ele terá escrito esta peça em três dias para ser representada pela Companhia do Teatro São Luiz, que andava em digressão pelos Açores, na altura era muito frequente. O texto terá um interesse histórico, documental. É um texto que está completamente à margem do que se fazia em Portugal nessa época. Tendo em conta o Manifesto Anti-Dantas, que é pouco anterior, digamos que o Vitorino Nemésio do Amor de Nunca Mais está mais do lado do Dantas do que do Almada. Não é por acaso que vamos publicar nesta coleção o «Elogio a Júlio Dantas». Curiosamente quando Nemésio é admitido na Academia [das Ciências de Lisboa], vai ocupar o lugar que tinha sido de Júlio Dantas. Fazia parte da etiqueta o novo académico fazer o elogio do anterior, a quem sucedeu.
P — Nemésio elogia Dantas apenas pela tradição da Academia das Ciências e/ou também porque o admira?
LFD — Há um Pessoa que mata todos os outros. Temos de considerar independentemente das paixões estéticas e ideológicas que tenhamos que Almada Negreiros foi bastante injusto com Júlio Dantas naquele manifesto. Júlio Dantas tinha 30 anos naquela altura. Não era propriamente aquele velho académico e castrador como era Castilho no tempo do Antero e do Eça. O Almada é extremamente agressivo naquele Manifesto com o Dantas.
P — Júlio Dantas, que também escreveu para teatro. A Ceia dos Cardeais, por exemplo…
LFD — Ele escreveu muitas peças de teatro e curiosamente, se nos abstrairmos dessas paixões ideológicas, Júlio Dantas é um homem com interesse. Podemos não gostar das ideias dele, mas é um homem que escreve muito bem. Ainda há dias encontrei lá por casa um livro dele chamado Diálogos, de 1920. Um dos textos tem por título «O Amor daqui a 50 Anos» e ele descreve a destruição de Tóquio pela aviação em 1942. Não foi Tóquio, foi Hiroxima. Ele não previu a bomba atómica, mas previu bombardeamentos. O Júlio Dantas tem de ser visto com algum interesse e o Nemésio chama a atenção para isso.
P — Cada volume da coleção terá uma breve introdução a cargo de especialistas na obra de Nemésio…
LFD — Mas quero frisar que são introduções absolutamente simples orientadas para o grande público. Aquelas introduções técnicas e exegéticas entram em edições críticas ou em edições académicas e universitárias. Não é o caso aqui. Por exemplo, quando começaram a editar os inéditos de Victor Hugo houve uma grande discussão, porque é que se está a publicar coisas que o autor não quis publicar. E Eça de Queirós escreve aquela frase que toda a gente conhece, «num escritor desta dimensão até as contas do alfaiate interessam».
P — Um dos volumes vai reunir textos inéditos e dispersos. Porque é que só agora são publicados?
LFD — Sabe que 175 anos depois do nascimento de Antero de Quental, noutra edição que estou agora a preparar, encontrei textos que tinham sido publicados em jornais incrivelmente afastados dos meios literários e que passaram despercebidos. É natural que um homem como Nemésio, que escrevia textozinhos para tantos jornais, tenha muitos dispersos também. E é importante reuni-los.
P — O jornalismo foi uma das paixões para Nemésio.
LFD — Sim, foi uma das suas paixões. Ele é convidado para diretor do jornal O Dia e convidado para diretor do jornal O Século.
P — Convite que recusa.
LFD — É desconvidado. Ele não era propriamente uma pessoa benquista do sistema.
P — Porque foi desconvidado?
LFD — Nunca se vem a saber. Mas o jornalismo é um assunto importante para Nemésio. Temos todavia de ter em conta a sua época. Vitorino Nemésio não é jornalista. Ele é sobretudo um comunicador.
P — A própria tipografia também foi importante.
LFD — Sim. Aliás, ele foi revisor de provas em Coimbra. Quando vem para o continente vem para a tropa. Depois, quando vai estudar para Coimbra, arranja trabalho na Imprensa da Universidade de Coimbra.
P — Nemésio, não sendo um revolucionário ou um ativista, era uma pessoa não grata ao regime…
LFD — Nemésio foi vítima de um certo farisaísmo que existiu em Portugal durante um certo tempo em que quem não fosse abertamente contra o Estado Novo, contra o Salazar, era colaborador. As coisas obviamente não são assim. No espólio de Nemésio encontramos uma carta em que Salazar convida Vitorino Nemésio para a Câmara Corporativa e encontramos o rascunho da resposta que ele deu. O original deve estar em Belém.
P — Ele responde a recusar?
LFD — Exatamente, ele recusou. Um homem importante, professor catedrático, com filhos para criar, que recusa um convite de um ditador para integrar, digamos, a sua equipa, é preciso ser um homem de coragem. Vitorino Nemésio foi, por exemplo, muito crítico da Universidade. Só muito tarde, quando já era uma figura incontornável, é que foi mais bem considerado pela Universidade. Nos primeiros tempos ele queixou-se muito.
P — Tal como Nemésio, o Luiz Fagundes Duarte também é açoriano, da ilha Terceira. A geografia da origem foi fundamental na sua aproximação a este autor?
LFD — Não. Conheci Vitorino Nemésio já idoso, pouco antes de morrer, e evidentemente que já tinha a admiração que é normal ter-se por um homem com o estatuto dele. Quando comecei a trabalhar em filologia foi com textos medievais. Na década de 1980 quando as obras de Eça de Queirós e de Fernando Pessoa caíram em domínio público, mercê da legislação que entretanto apareceu, fui chamado para colaborar na edição crítica de Eça de Queirós. Nessa altura estava a preparar o meu doutoramento exatamente sobre os manuscritos de Eça de Queirós. Ao mesmo tempo fui chamado para a Equipa Pessoa, que preparava a edição crítica da poesia de Fernando Pessoa. A partir daí fui trabalhando estes dois autores, mais ou menos em simultâneo, e fui começando a especializar-me. Deixei a linguística histórica e a filologia de textos medievais e passei a interessar-me cada vez mais pelos autores modernos e sobretudo pelo trabalho genético que encontramos nos manuscritos autógrafos, muito concretamente de Pessoa e Eça, cujos manuscritos são extremamente ricos no que diz respeito ao processo de criação e àquela guerra que os autores têm com a língua, com as normas sociais, com as regras dos géneros literários em que eles têm de encontrar as palavras adequadas para exprimirem as suas ideias.
P — Suponho que esse deve ser um trabalho muito absorvente.
LFD — Sim, é um trabalho extremamente intenso e ao mesmo tempo tem uma certa carga policial. Andamos à procura de manchas, de marcas e de sinais que o autor deixa nos seus papéis. Fazemos isto para tentar perceber como é que os autores construíam os seus textos.
P — Então como chegou a Nemésio?
LFD — Um pouco por acaso e de certa maneira na sequência desse trabalho. A Marquesa de Jácome Correia veio falar comigo.
P — A autora do curioso Amores da Cadela «Pura».
LFD — Exato! Ela foi a grande paixão na parte final da vida de Nemésio. E ela contactou‑me, porque sabia que eu andava a trabalhar com manuscritos, no sentido de preparar um livro de poesia que Vitorino Nemésio tinha deixado inacabado. E eu achei o desafio interessante.
P — Está a falar do livro de poesia Caderno de Caligraphia e Outros Poemas a Marga?
LFD — Sim, e esse livro foi publicado precisamente aqui, na Imprensa Nacional.
P — Fale-nos, então, de como se processou esse «desafio».
LFD — Comecei por recolher os papéis. Passava noites seguidas em casa da Sr.ª D. Margarida Victória [Marquesa de Jácome Correia]. Isto por uma razão: é que ela vivia de noite. Era uma senhora com uma história de vida fascinante. Passei lá muitas noites e ela contava-me as histórias todas. A determinada altura comecei a procurar papéis escritos por Nemésio em todos os lugares (debaixo das camas, nas cómodas, nas gavetas) quer na casa de Lisboa quer na casa dos Açores. Preparei esse livro, que estava para ser publicado mas depois houve um problema de direitos [de autor] com a família e o livro ficou parado. Esse impasse serviu para que fosse procurar mais papéis de Nemésio.
P — E havia mais?
LFD — Sim, encontrei dezenas e dezenas de papéis. A partir daí constituí esse livro. Uma parte com o que ele havia deixado preparado — Caderno de Caligraphia — e depois reuni muitos mais poemas que estavam dispersos, a que dei a designação de «Outros poemas a Marga». Marga era um dos nomes amorosos que Vitorino Nemésio dava à Sr.ª D. Margarida Victória. Na sequência deste trabalho, Vasco Graça-Moura, com quem tinha uma excelente relação, propôs-me que o livro fosse publicado pela Imprensa Nacional no âmbito da edição da obra completa de Vitorino Nemésio. O livro foi publicado. Depois, e por um seguimento lógico, foi necessário fazer uma nova edição, depois daquela que foi feita pela minha colega e amiga Fátima de Freitas Morna, da restante poesia de Nemésio. Na altura a Fátima não estava disponível para fazer aquele trabalho e eu comecei a fazê-lo. Portanto, neste momento estão publicados aqui na Imprensa Nacional os quatro volumes (três volumes, só que um em dois tomos) da poesia completa de Vitorino Nemésio conhecida.
P — Ainda há poesia não conhecida? Ainda há inéditos?
LFD — Haverá na Biblioteca Nacional, devidamente protegida e selada (não sabemos o que estará dentro desses caixotes, dessas pastas onde se encontram esses papéis), muita poesia inédita de Nemésio.
P — Ou seja, esta nova coleção vai reunir textos inéditos e dispersos de Vitorino Nemésio mas depois destes inéditos publicados continuarão a existir inéditos? É isso?
LFD — Sim, continuarão a existir inéditos. Porque uma parte do espólio de Vitorino Nemésio está sob reserva na Biblioteca Nacional.
P — E isso foi por vontade do autor?
LFD — Alguém que não foi o autor — e que segundo as minhas informações foi David Mourão-Ferreira com as competências que tinha na altura — entendeu que aqueles papéis deveriam ficar sob reserva durante 50 anos após a morte do autor. Só quando se completarem os 50 anos da morte de Nemésio, em 2028, é que poderemos ter acesso a esses papéis e saber o que é que lá está dentro.
P — Sabe-se que David Mourão-Ferreira foi aluno, seguidor e amigo de Nemésio, a quem chamava inclusive de «mestre». Mas quem lhe conferiu essa autoridade de deixar sob reserva parte do espólio de Nemésio?
LFD — Não sei se esse poder lhe foi conferido pelo próprio Nemésio ou se pelos herdeiros. Não estou a par disso. Eu enquanto filólogo fico um pouco inquieto por saber que há poesia e diários de Nemésio na Biblioteca Nacional que não se podem consultar.
P — Foi, então, a filologia que o levou até Nemésio.
LFD — Foi um pouco pelo dinamismo do trabalho filológico que cheguei até Vitorino Nemésio. O facto de ele ser açoriano e natural da mesma ilha não teve aqui qualquer relevância. Claro que, naturalmente, em alguns aspetos, sobretudo na ficção e também na poesia, em que Nemésio utiliza muita terminologia típica da ilha Terceira, do dialeto da ilha Terceira, um filólogo que conheça bem o dialeto pode encontrar coisas bastante interessantes. Aliás, a PRELO publicou, creio que no Dia do Pai, um poema de Nemésio da sua juventude em que ele reproduz foneticamente a linguagem da ilha Terceira e também o vocabulário.
P — Dizia há pouco que chegou a privar com Nemésio, no final da vida dele. Que memórias guarda do homem?
LFD — Fui a casa dele aqui em Lisboa, na Rua da Sociedade Farmacêutica, com um amigo meu também da ilha Terceira e que ainda era aparentado com o Nemésio. A ideia que eu tive dele, de certa maneira, foi uma desilusão.
P — Porquê?
FLD — Quando admiramos muito alguém pelo seu trabalho criamos uma expectativa, um certo endeusamento… Quando fui a casa dele encontrei um senhor idoso, completamente distraído — isso eu já sabia que ele era — que não me ligou assim particularmente. Enfim, eu era um miúdo, tinha 20 anos. Digamos que não encontrei aquela pessoa esfuziante que estava à espera de encontrar. Curiosamente, anos mais tarde, quando comecei a trabalhar com os materiais do Caderno de Caligraphia com aquela poesia toda dedicada a Margarida Victória, percebi que quando lá fui a casa ele estava nessa fase. Aquilo que agora a posteriori vejo é que conheci um adolescente que estava apaixonado e a escrever poemas de amor à sua amada [risos]. Mas a ideia com que sempre ficamos dele é a daquela figura um pouco austera e ao mesmo tempo extremamente comunicativa. Aliás, pretendemos editar, uma vez que já estão transcritos, os seus programas de televisão, o Se bem Me Lembro.
P — Conseguiram recuperar todos esses programas?
LFD — Conseguimos recuperar parte deles, muita dessa informação perdeu-se nos arquivos da RTP. A capacidade de comunicação de Vitorino Nemésio nota-se muito também quer na escrita quer na poesia. É uma poesia bastante musical e que nos leva de certa maneira no encantamento da palavra.
P — Qual foi a linha orientadora para a escolha dos excertos do Se bem Me Lembro para esta coleção? Afinal estamos a falar de um programa que foi semanalmente (no último ano quinzenalmente) para o ar entre 1969 e 1975…
LFD — Não houve nenhuma linha orientadora. Houve, sim, a necessidade de recolher tudo o que estava disponível. Portanto, aquilo que vamos publicar, e em que a Cláudia Cardoso está a trabalhar, não é o resultado de uma seleção mas o resultado de uma escolha do que havia. Nessa altura as gravações eram feitas em fita e muitas vezes a RTP reciclava as fitas, gravava por cima. Tudo aquilo que está disponível publicamos.
P — Porque acabou o Se bem Me Lembro? Afastaram Nemésio ou foi Nemésio que se quis afastar?
LFD — Não sei muito bem. A partir de um determinado momento começam a aparecer outras alternativas e, talvez, terá havido um pouco de cansaço da parte dele. Não sei quais as razões conjunturais para o fim do programa. Bom, os programas de televisão têm a vida que têm… O que é importante termos em conta é que foi o Nemésio o primeiro a fazer isso. Tal como Bocage nos princípios do século XIX traz a poesia para as tabernas, para a rua, o Nemésio já apoiado pela tecnologia traz a poesia para a rua. Não era a poesia em si mas era cultura, que não era futebol nem Nossa Senhora de Fátima. Vitorino contribui grandemente para a democratização da cultura. E não apenas a cultura erudita. E na altura não havia o conceito de estúdio como nós o conhecemos hoje e o Nemésio para fazer aqueles programas tinha de ter uma pessoa na sua frente.
P — E quem era essa pessoa?
LFD — Era um funcionário da RTP, alguém destacado para estar ali diante dele. Uma pessoa de carne e osso para quem Nemésio apontava e falava. Ele não tinha a noção do público através da máquina.
P — Depois do programa na televisão, Vitorino Nemésio teve um programa de rádio, O Que Tenho a Dizer?
LFD — Sim, sim, essas intervenções radiofónicas depois foram publicadas no volume Ondas Médias, foi o próprio que as escolheu para publicar. Ainda foram publicadas em vida.
P — Se bem Me Lembro foi o primeiro programa televisivo, em Portugal, onde um intelectual falava para as massas e as massas ficavam durante meia hora rendidas à… podemos chamar teatralidade de Vitorino. O que prendia milhões de portugueses ao ecrã para ver e ouvir Vitorino Nemésio?
LFD — Temos de ver as coisas no seu contexto. Nessa altura havia apenas um canal de televisão. As pessoas não tinham alternativas e por isso viam aquilo que aparecia. O que é facto é que hoje, passados 50 anos, quando se fala, num contexto comum, de Vitorino Nemésio, as pessoas falam no Se bem Me Lembro. Ou seja, o nome de Vitorino Nemésio é um nome conhecido e provavelmente as pessoas nunca leram nada dele.
P — Leram provavelmente o Mau Tempo no Canal, que durante muitos anos fez parte do currículo obrigatório das escolas mas já não faz.
LFD — O que acontece efetivamente é que Mau Tempo no Canal é um romance difícil, com um formato de inspiração do século XIX, balzaquiano, flaubertiano, queiroziano, etc.
P — Mau Tempo no Canal ressente-se dessas técnicas narrativas do romance do século XIX, mas também traz coisas novas?
LFD — Sim, traz muita coisa nova. Sou suspeito, mas acho que é um dos grandes romances em língua portuguesa de sempre. Acontece que é difícil. As pessoas não estão habituadas àquele pormenor da descrição (das paisagens, das pessoas…). As pessoas não sabem que para o Mau Tempo no Canal, Vitorino Nemésio fez desenhos do terreno. Por exemplo, uma das cenas passa-se na Urzelina, na ilha de São Jorge. Encontramos no espólio dele um desenho muito tosco em que ele representa a freguesia da Urzelina vista do mar. Quando lemos o romance encontramos essa descrição. Ou seja, ele desenhou a paisagem, não a fotografou porque naturalmente não tinha máquina fotográfica, para poder imprimir realismo à descrição. Vitorino Nemésio tinha uma preocupação com o pormenor que não é muito frequente. E isto ao nível do poder da linguagem é fascinante. Ele introduz na linguagem erudita a linguagem popular dos Açores, incluindo a dos baleeiros. Aquilo que o romance traz de novo é a linguagem. É a capacidade que Nemésio tem de mimetizar a linguagem das personagens. Este romance tem muitas personagens, o que é um fator de dificuldade para os leitores, que têm de fixar aqueles nomes todos. O próprio autor sentiu necessidade de mostrar uma tábua de personagens. Mau Tempo no Canal é uma obra extremamente rica em termos de linguagem e de técnica narrativa, mas isto não faz de Mau Tempo no Canal uma obra fácil, daquele tipo de obras que as pessoas atualmente gostam de ler que contam uma história limpinha e que depois mudam de assunto. Além de Mau Tempo no Canal temos também A Casa Fechada, que são obras de Nemésio que ficam como representativas da ficção portuguesa do século XX. Mas é no domínio da poesia que temos um grande Nemésio. Costumo dizer aos meus alunos que Portugal é um país de um homem só. Quando temos Fernando Pessoa todos os outros desaparecem. O que é injusto. Agora tenho trabalhado também com as edições críticas de Antero de Quental e apercebi-me de que aquilo que Pessoa tem, e que faz dele um grande poeta, Antero de Quental já tinha. Fernando Pessoa foi buscar muita coisa a Antero de Quental. E esta relação e este diálogo entre autores é natural.
P — Mau Tempo no Canal é uma obra monumental e surge numa altura da história da literatura portuguesa em que o romance não estava em voga, em 1944. Concorda?
LFD — Sim. Nós portugueses temos a tendência de consagrar e considerar uma prima‑dona determinados autores. E, no caso do romance, depois d’Os Maias de Eça de Queirós (e dos outros romances também, mas concretamente Os Maias) foi difícil encontrar outro autor que tivesse essa capacidade de através de uma obra narrativa fazer o retrato factual e espiritual de um país.
P — Temos talvez Aquilino Ribeiro com as suas Terras do Demo.
LFD — Exato! Aquilino Ribeiro é um grande escritor mas que é intraduzível fora do seu contexto cultural. É muito difícil lê-lo hoje em dia, o que é uma pena. É muito difícil, numa escola que está cada vez mais dominada pela facilidade das redes sociais, da globalização, ter tempo para pôr os seus alunos a pensar em todo aquele vocabulário de Aquilino Ribeiro. Um vocabulário que tem muito a ver com os contextos culturais mas também com a criatividade dele e da utilização que ele faz dela. Temos o Aquilino Ribeiro e temos outros grandes mas com outra dimensão, como o Ferreira de Castro.
P — Mas é com Mau Tempo no Canal que se vai constituir um novo marco no romance português.
LFD — Sem dúvida! Aparece ali um romance que primeiro estranha-se, como diria Pessoa, mas depois entranha-se. É uma obra que cativa as pessoas. Mas é preciso ter em conta que a generalidade das pessoas de nível de escolaridade elevado diz que não consegue ir além das primeiras 30 ou 40 páginas. É uma leitura que exige dedicação e trabalho.
P — Apesar de ter escrito Varanda de Pilatos, o seu primeiro romance publicado, Nemésio não nutria grande consideração por ele. Porquê?
LFD — Pois não. Isso aí levar-nos-ia para outra dimensão.
P — Era o próprio Nemésio que o dizia. Ele considerava-se autor de «um único romance» e referia-se evidentemente a Mau Tempo no Canal.
LFD — O que é um pouco injusto. Tecnicamente, de facto, o romance é Mau Tempo no Canal. Os outros são novelas ou são coleções de novelas. Naquelas novelas ele consegue captar e mimetizar a linguagem das personagens. Aí ele deu um contributo na medida em que elevou a um alto patamar do ponto de vista da erudição a linguagem popular. Como no fim da vida integrou na poesia a linguagem científica. Em O Limite de Idade, publicado em 1972, ele utiliza em praticamente todos os poemas linguagem científica da química, da biologia… Ele é capaz de elevar em imagem estética a linguagem popular e a linguagem científica. É um homem extremamente culto que é capaz de falar de quase tudo, que faz lembrar aqueles sábios do Renascimento, e que introduz não com valor folclórico a linguagem do povo, uma linguagem autêntica, dignificando-a e não a põe na prateleira do folclórico.
P — Como é que um romance cuja ação se situa num cosmos tão pequeno de umas ilhas perdidas no meio do oceano se torna um dos mais importantes livros do século xx português, exaltado precisamente pela sua universalidade? Que ingredientes são estes?
LFD — Em primeiro lugar, a inteligência do seu autor, que nos permitiu chegar a uma conclusão. É que numa freguesia, numa localidade (nos Açores não há conceito de aldeia) remota, numa ilha remota dos Açores, a identidade humana, a humanidade, é a mesma. As pessoas têm alegrias, têm tristezas, têm ciúmes, têm dores, têm exaltações… Nemésio consegue reproduzir o drama humano, a comédia humana, se quisermos, que tem os mesmos cambiantes seja em que parte do mundo for, utilizando referências açorianas. O que ele faz é captar a essência humana, o resto é paisagem, é cenário.
P — Esse cenário da ilha é para Nemésio qualquer coisa que inspira.
LFD — Sem dúvida.
P — Mas é também um símbolo para chegarmos à metáfora do humano?
LFD — Possivelmente. Ele é açoriano porque nasceu lá. E como nasceu lá e foi educado lá, tem as suas referências nos Açores.
P — E se a Miguel de Unamuno associamos o conceito de hispanidade, a Vitorino Nemésio é atribuída a criação do termo «açorianidade», expressão que usa num artigo que escreve em 1932 para a revista Insula.
LFD — Esse pequeno texto é hoje considerado um monumento de definição conceptual do que é ser açoriano. E Nemésio equaciona esse problema: nós somos uma espécie de sereias, temos os ossos no mar, respiramos água… mas somos humanos. É curioso — este é um texto de juventude. Ele tinha 30 anos quando escreveu esse texto que lhe foi pedido para uma revista. Mal sabia o impacto que esse texto iria ter e que ainda hoje tem. Ele fala dessa angústia de nós açorianos vivermos nessa ilha que supostamente é fechada, mas numa ilha tem-se uma visão mais vasta do que num continente. Porquê? Porque tem o mar a toda a volta. Há uma noção de liberdade mas uma liberdade condicionada. E depois, além do isolamento que o mar impõe, a insegurança que há em viver-se em cima de vulcões que estão adormecidos mas são vulcões e de vez em quando tremem. Ao mesmo tempo fala da capacidade de os açorianos se abrirem ao mundo. Só no século XX a quantidade de açorianos ilustres na literatura, nas artes plásticas, na política, que se deram a conhecer ao mundo. António Dacosta, Natália Correia, dois presidentes da República [Manuel de Arriaga e Teófilo Braga], uma série de presidentes do Parlamento… Portanto os açorianos têm essa facilidade de ver o mundo do seu contexto e projetar-se nele.
P — E o Luiz Fagundes Duarte, reconhece-se nesse conceito?
LFD — Sim, reconheço-me nesse conceito. Tenho uma casa na ilha Terceira e sempre que lá estou nunca me esqueço que existe Lisboa ou Paris. Mas muito provavelmente aqui no continente temos localidades muito mais isoladas do que os habitantes da ilha do Corvo. Nos Açores, ainda me lembro disso, quando era criança nos meios rurais, e havia taxas de analfabetismo enormes, quando as pessoas estavam a trabalhar em comunidade, por exemplo, a desfolhar o milho, havia alguém, não sei se espontaneamente, que lia um livro enquanto os outros estavam a trabalhar. Havia essa necessidade de comunicação e de partilha. Agora se isso é açoriano ou não, não sei. O que é facto é que isto exemplifica uma maneira de ser açoriano e que Nemésio lá tem. Nomeadamente quando refere aquela ambivalência que não sendo uma coisa nem outra é sim uma terceira coisa que é síntese do resto.
P — Hoje em dia, num mundo tão global e globalizado, esse sentimento de açorianidade continua a fazer sentido?
LFD — Sim, continua a fazer sentido. Vou dar-lhe um exemplo. O carnaval popular na ilha Terceira é dinamizado por toda a população. E é teatro. São as chamadas danças de carnaval. É teatro dançado. As pessoas das freguesias organizam-se, escrevem os textos, fazem o guarda-roupa, compõem a música e depois atuam em todos os salões da ilha durante os três dias de carnaval. Em cada salão estão centenas de pessoas à espera. E depois vem outro grupo. Lá não há os corsos de carnaval nem as meninas a dançar o samba. O que há são membros da comunidade que preparam e encenam este teatro dançado e representam para os outros. E no dia seguinte se receberem um elogio «foi um excelente ator» eles dizem que «não, vou é tratar das minhas vacas». Isto representa uma identidade cultural muito forte que resiste.
P — A geografia sobrepõe-se à história no coração de um açoriano?
LFD — É evidente. A geografia limita, é verdade, condiciona, também é verdade, mas também é verdade que serve de motor para que as pessoas criem mecanismos para a ultrapassar sem a abandonar.
P — Depois do 25 de Abril houve vários movimentos separatistas em Portugal. Nomeadamente nos Açores. Em meados dos anos 70, o movimento independentista dos Açores chegou a invocar Nemésio para primeiro presidente da República dos Açores. Nemésio alguma vez levou isto a sério?
LFD — Não! Aliás, os movimentos separatistas dos Açores são mais ficção do que outra coisa! Nunca tiveram expressão popular. Os Açores nunca foram uma colónia. Eram ilhas despovoadas e, desde a sua origem, sempre foram portugueses. Os exploradores eram portugueses e levaram para lá a sua língua e as suas tradições.
P — Mas estes movimentos existiram.
LFD — Sim. Esse movimento teve alguma razão de ser pelo seu contexto. A Marquesa de Jácome Correia, que era muito abastada e tinha muitas propriedades, contou-me que a determinado momento tinha nas suas propriedades armas escondidas. Há aliás um poema de Nemésio no Caderno de Caligraphia que fala disso e começa assim «Margarida e Natália telefonam-me…». Ele estava em Paris e havia uma necessidade de os açorianos tomarem uma posição relativamente àquilo que eles consideravam uma afronta do continente. E o poema de Nemésio é até bastante violento contra as injustiças que o Estado Português cometia contra os Açores. Houve esta situação e houve também uma reunião que a Natália Correia promove junto do General Eanes que na altura era presidente da República, mas não teve reflexos. No entanto, foi desenhada uma nota de dinheiro, já não me recordo do valor, talvez mil escudos açorianos, com a efígie de Vitorino Nemésio. Creio que ele nunca teve uma grande noção política do assunto e deixou-se ir apenas por aquela paixão das ilhas. Nemésio é um grande escritor português e ponto final.
P — E onde se insere, o grande escritor que é Vitorino Nemésio?
LFD — Vitorino Nemésio inscreve-se naquele grupo de autores portugueses que foram abafados e prejudicados pela repentina, justa mas talvez exagerada, projeção de Fernando Pessoa. Hoje em dia todos falam de Pessoa, que já é um ícone para turistas, chegamos às livrarias e só encontramos a Lisboa de Pessoa ou os cafés de Pessoa e por aí fora. Tudo o resto fica na penumbra. Por isso é que é muito importante, com os meios que temos à disposição, criarmos condições e cruzá-las para que outros grandes poetas, que não desmerecem nada de Pessoa, possam ter pelo menos a possibilidade de serem lidos.
P — Nemésio diz numa carta a Casais Monteiro: «Não posso simplificar muito o meu estilo, porque, bem vê, para mim, como para Baudelaire, as coisas respondem umas às outras.» Consegue inserir Vitorino Nemésio num movimento ou numa escola literária?
LFD — Não, e felizmente que não. É difícil ser-se um escritor criativo e professor universitário. Eu tenho esse problema. Enquanto trabalho com os manuscritos do Eça, do Pessoa ou do Nemésio fico inibido de produzir os meus documentos. Acho que eles já disseram aquilo que eu queria dizer e, portanto, não vale a pena. Há um conflito de interesses de certa maneira. O Nemésio é um académico que vai reagindo ao mundo em que vive num determinado contexto. Ele não é apologético, não é missionário de uma determinada bandeira. Mas é evidente que ele tem dimensões da sua criatividade que podem chegar um pouco ao neorrealismo, até ao simbolismo e algumas coisas até ao surrealismo. Ele é um homem livre que consegue gerir muito bem a sua condição de criador e de académico. Aliás, ele como académico era o caos total. Começava a falar do que lhe vinha à cabeça e não propriamente no programa que tinha de dar. Em aulas de Literatura Francesa, chegava a dar aulas de Física Quântica. Os alunos ficavam fascinados. Os que foram alunos dele valorizam o estilo flutuante das aulas dele e a visão global de Nemésio. Meter o Nemésio numa escola é ir contra a sensibilidade dele. De resto, acho que ele nunca pensou muito nisso. Também nunca foi muito bem aceite pelos outros.
P — Face à dimensão literária de Vitorino Nemésio (que extravasa amplamente o regional), o Governo dos Açores apoia esta edição, promove-a?
LFD — Não faço a mínima ideia. Faria todo o sentido que o fizesse. Sei que o editor, Carlos Machado, da Companhia das Ilhas apresentou a proposta à Secretaria da Educação. Como fui o anterior titular dessa pasta, preferi não me envolver nessa questão. Para mim, faria todo o sentido que o Governo dos Açores apoiasse. Aliás, em tempo tive um projeto nesse sentido, em que defendia que quatro ou cinco ou dez livros e autores definissem o corpus estruturante que todos os açorianos deviam ler. Dois ou três livros da Natália, dois ou três do Nemésio, dois ou três do Antero. Uma espécie de Biblioteca Fundamental a que todo o açoriano pudesse ter acesso nas bibliotecas, nas escolas… Ou seja, agora entre aspas, quem não lesse aquilo não era açoriano [risos]! O Governo dos Açores deveria financiar e criar condições para que Natália, Antero, Nemésio e mais uns tantos nunca estejam fora do mercado.
P — É quase difícil de adivinhar o início escolar deste homem que formou gerações e gerações de outros homens das letras e da cultura do século xx português: foi um aluno medíocre, que chumbou um ano, que foi expulso da escola… Era um rapaz demasiado inteligente para ser compreendido na escola convencional?
LFD — Provavelmente. Diria que ele não tinha aquelas características do aluno passivo, que está na escola para ter umas aulas e obter umas notas. Naturalmente, ele seria um aluno que pensava nas coisas. A escola convencional, por vezes agressiva, não seria o melhor ambiente para ele. Mesmo já a trabalhar na universidade, queixa-se muito de todas aquelas tarefas horríveis como o fazer exames. Podemos ler essas queixas na sua correspondência. Nem como aluno nem como professor era um modelo de bom comportamento no sentido convencional do termo. Ainda bem!
P — E o Luiz Fagundes Duarte, enquanto professor no século XXI, que já teve responsabilidades políticas, acha que hoje em dia esse é um problema superado?
LFD — Não, não está, se tivermos em conta a taxa de abandono escolar que ainda temos hoje em dia, uma das piores do contexto da OCDE. Portugal estava até há bem pouco tempo nos últimos lugares da tabela. Portugal é um país que se dá ao luxo de ter excelentes escolas do ponto de vista das instalações. Tem também um quadro docente estabilizado. Ter a taxa de abandono escolar que ainda tem deve-nos fazer pensar. Enquanto estive na atividade política fui presidente da Comissão Parlamentar de Educação e Ciência e tive responsabilidade da educação nos Açores. Quando um aluno falha na escola a culpa não é do aluno. Mesmo se se tratar de um aluno preguiçoso, a culpa não é dele. É do contexto e da escola que não o soube motivar. Não é por acaso que essa taxa incide sobre alunos de classes sociais desfavorecidas. Isto é um problema social. E é um problema que se mantém. No nosso país ainda há muitas crianças que vão para a escola sem comer e cuja única refeição quente que fazem é na cantina da escola. Estes alunos nunca podem ser bons estudantes, nunca podem ser cumpridores, nunca podem ser alunos interessados porque têm fome e não têm motivação familiar. É um problema grave e que não tem que ver com a escola em si, não tem que ver com o programa escolar. A escola é uma representação do seu contexto social. Há escolas que trabalham maravilhosamente bem nesses meios mais desfavorecidos. Quando era secretário da educação, fui visitar uma escola e lá nuns anexos vi uma máquina de lavar a trabalhar. E aquilo era um objeto que eu não associava à escola. E depois lá me explicaram. É que muitos alunos chegavam à escola na segunda-feira com a roupa que tinham trazido na sexta-feira. E então os professores, duas vezes por semana, pegam nos meninos, dão-lhes um banho, lavam-lhes a roupa. E estamos a falar de há 4 ou 5 anos atrás. É de facto um problema social que o Estado ainda não percebeu que tem.
P — E será que a escola já está preparada para aquele tipo de meninos tal como Nemésio, que vinha de uma classe média normalíssima, mas que tinha uma inteligência acima da média, ou para meninos sobredotados?
LFD — Esse é um conceito que não entra no meu vocabulário. Não sei o que é uma criança sobredotada. Agora é muito fácil pôr-se esse tipo de carimbos. O que acontece é que eventualmente há miúdos que por questões de educação de temperamento próprio são mais curiosos e têm uma capacidade cognitiva mais desenvolvida. A escola tem é de saber que provavelmente um menino sobredotado precisa de determinadas motivações, mas um outro menino que não é sobredotado tem determinadas competências que têm de ser aproveitadas. Há uns anos visitei uma escola nos Olivais onde de repente tinham entrado 80 crianças ciganas porque uma comunidade cigana tinha-se estabelecido ali na zona. A escola assim de repente recebe 80 meninos ciganos que por razões culturais não têm o conceito de porta fechada, de horário… E aos pais fazia-lhes impressão deixar as miúdas na escola depois de as portas ficarem fechadas. E iam para a escola discutir com as professoras. Até que as professoras tiveram uma ideia brilhante. Como os meninos ciganos vão para as feiras e estão habituados a vender, a fazer cálculo e contas de cabeça, as professoras desenvolveram um programa à base do cálculo mental e outro à base da habilidade física. A partir daí as crianças ciganas passaram a sentir-se valorizadas porque tinham habilidades em que eram melhores do que os outros. E os pais que iam à escola para se zangarem com as professoras passaram a ir à escola para se orgulharem dos filhos. Portanto, esta escola encontrou um caminho. E não é uma questão de sobredotados. Para crianças diferentes, arranjam-se programas diferentes. É preciso descobrir no aluno aspetos em que ele pode vir a ser valorizado. Uma criança que se sente valorizada naturalmente aprende as outras matérias. Possivelmente um mau aluno não aprende porque não sente motivação para isso.
P — Como é que imagina a escola daqui a umas décadas?
LFD — A escola que gostava que existisse daqui a umas décadas seria uma escola, em primeiro lugar, que acabasse com as disciplinas, porque o conhecimento não está em gavetas. Não faz sentido haver o professor de Física, o professor de Matemática… O professor é o professor. Imagino uma escola onde os meninos têm uma educação sistémica.
P — E o que é que é preciso fazer-se para se chegar aí?
LFD — É preciso mudar muitas cabeças. Neste momento já está a ser feito na Finlândia. Tenho pena que cá não o façam. Já há alguns anos que falo nisto e chamam-me alguns nomes.
P — Como é que Vitorino Nemésio conquistou o seu lugar na Universidade?
LFD — Terminado o seu curso, fez a sua carreira normal e depois começa a ir para fora e a ganhar um prestígio internacional, sobretudo em França e no Brasil, o que lhe dá um respaldo que o vai proteger.
P — Que importância tiveram as vivências no estrangeiro na obra de Vitorino Nemésio? Como docente universitário estagiou em França, na Bélgica, no Brasil, em Espanha e na Holanda…
LFD — Sim. Há os poemas brasileiros todos. A «Ode ao Rio», por exemplo. Nemésio integra a cultura brasileira e integra-se muito bem nela. No Caderno de Caligraphia boa parte dos poemas são escritos em França. O seu primeiro livro de poesia importante é escrito em francês. Ele escreve diretamente em francês. É um homem culto e aberto. Ele tem, e ressente-se um pouco por isso, a noção de que pelo facto de ser português nunca entrará em determinados meios. Ele escreve uma carta a Virginia Woolf a dizer que gostava muito de lê-la e envia-lhe um livro seu. Não sabemos qual. E no espólio dele temos a resposta de Virginia Woolf, uma carta muito elegante, de uma lady, que lhe dizia que infelizmente não conseguia ler português mas que fará todo o possível para ler a poesia dele em francês. Vitorino Nemésio no seu diário refere essa carta de Virginia Woolf e fala dessa fatalidade de ser português. Teve uma oportunidade de ver o Paço do Milhafre traduzido para francês mas ele recusou porque achava que a tradução para francês iria perder toda aquela característica da linguagem. Ou seja, por um lado ele ressente-se de não ser mais reconhecido internacionalmente mas por outro lado quando tem essa oportunidade reconsidera ou recusa porque considera que aquilo que transparecia para a outra língua era espuma. O essencial ia perder-se. Ele, de facto andava aqui nesta ambivalência. Também reconheço que haverá muito da poesia dele que hoje em dia continuará a ser difícil de traduzir e, sobretudo, de penetrar.
P — Essa é uma dificuldade de vários autores.
LFD — De Camilo Castelo Branco, de Aquilino Ribeiro, por exemplo. Ao contrário de Eça de Queirós, que tem uma linguagem mais internacional e um gosto mais normalizado. Escritores como Camilo, Nemésio ou Aquilino têm determinadas características que não permitem que eles sejam projetados.
P — Talvez nessa lista se deva incluir também Garrett.
LFD — Ainda há dias li um folheto do século XIX publicado em Paris, quando o Frei Luís de Sousa foi representado lá, e a crítica francesa é extremamente negativa. Dizia que o homem não tinha imaginação nenhuma, etc. Não conseguiram perceber a alma portuguesa e o drama português que está subjacente ao Frei Luís de Sousa.
P — Em O Paço do Milhafre e O Mistério do Paço do Milhafre, bem como neste primeiro volume da poesia, sente-se com toda a força esse regionalismo açoriano. Que cuidados deve ter um editor crítico para tornar o texto acessível a um público mais alargado?
LFD — Neste primeiro volume de poesia, sentiu-se a necessidade de se escrever um texto onde se explica as questões técnicas de transcrição fonética e dos símbolos que se utilizaram e que não podem ser alterados por uma questão muito simples: tratando-se de um texto poético a própria forma é poesia. Utilizar determinados símbolos para se representar determinado som fazem parte da estética e, portanto, têm de ser conservados. Mas houve a necessidade de se fazer uma pequena explicação. Aquilo que o editor crítico tem de fazer é zelar para que nenhum dos objetivos que eram desejo do autor seja escamoteado ou prejudicado. E neste caso o que tem de fazer é deixar o que lá está e dar um conselho ao leitor: leia em voz alta. Interessa sobretudo as pessoas perceberem que do ponto de vista fonético aqueles poemas foram escritos como a voz do povo. Seria muito interessante, por exemplo, contratar-se um ator e gravar a leitura dos poemas.
P — E do ponto de vista do vocabulário?
LFD — Grande parte dos leitores comuns portugueses também não percebe o vocabulário de Camilo [Castelo Branco] ou mesmo de Eça de Queirós e não é por isso que as obras deles deixam de ser divulgadas. O que temos de garantir também aqui é que o leitor tem de ter acesso ao texto que o autor escreveu e tem de ter a informação mínima essencial e tem de ter a chave. A chave é uma pequena nota. No dialeto da ilha Terceira as vogais abertas em posição tónica ditongam-se de acordo com a vogal anterior. Por exemplo, a palavra «casa» nós dizemos «estou em quiasa» mas dizemos também «eu comprei uma quasa». O dialeto da ilha Terceira funciona pelo contexto auditivo. E depois o leitor tem também de fazer o trabalho de casa. O leitor deve trabalhar um bocadinho.
P — Vitorino Nemésio possuía uma biblioteca pessoal com cerca de 14 mil volumes. A biblioteca de Nemésio está hoje acessível ao público?
LFD — Não sei muito bem. Sei que há uma parte da biblioteca que está em Angra do Heroísmo. Mas com franqueza não lhe sei dizer o destino global da biblioteca de Nemésio.
P — A seu ver, que temas se destacam na obra nemesiana?
LFD — A obra de Nemésio é muito multifacetada. Ele é uma espécie de cata-vento não no sentido de mudar consoante o vento mas no sentido de apanhar o vento. Na poesia seria interessante ver a maneira como ele vai reagindo aos estímulos do tempo, ver isso de livro para livro. Ele apanha a I e a II Grandes Guerras, apanha a Guerra Colonial, o Estado Novo, o 25 de Abril… A preocupação pela condição humana e pelas pequenas coisas do dia a dia. Estou a lembrar-me de um poema dele que está no Caderno de Caligraphia onde ele diz que vai ao banco depositar um cheque, que era a pensão dele. Um ordenado de miséria como são os ordenados dos professores. Então ele reflete «naquilo que eu fiz e naquilo que eu recebo em parte». É uma coisa picuinhas do dia a dia, que é o dinheiro, de que toda a gente precisa, mas é também a reflexão do que é que isso representa em termos da doação que o sujeito ao longo de toda uma vida fez. Para quê? Sou um velho poeta coxo. Em suma, Nemésio tem uma preocupação social, tem uma preocupação do dia a dia, o erotismo é uma presença bastante forte em toda a sua poesia (mais ou menos camuflado). Quando ele se apaixona aos 70 anos digamos que aparecem nos poemas dimensões eróticas incompatíveis com um homem da idade dele, mas eram autênticas. Ele não tem nada que ver com homens da geração dele, como José Régio. Na minha opinião Nemésio é muito mais rico e interessante mas que tem um custo que daí advém: é muito mais difícil de catalogar e de sintetizar.
P — E qual é o principal símbolo de Nemésio?
LFD — O cantador popular.
P — Pensei que me pudesse responder a baleia, o cavalo… Porquê o cantador popular?
LFD — Estou a pensar num senhor da ilha Terceira que ainda é vivo e que é um príncipe. É analfabeto, tem o olho azul muito bonito, anda sempre com o seu chapéu. É um homem do campo. Tem os seus 80 e muitos anos. Ainda canta. É um homem que faz sextilhas perfeitas: os versos, as rimas… tudo espontâneo. Faz cantorias ao desafio. É um cantador popular. O Nemésio era muito amigo de alguns desses. Até existem muitas fotografias dele a tentar tocar viola — tocava muito mal e cantava ainda pior. Nemésio gostava muito de interagir com esses poetas populares que são autênticos príncipes. São pessoas extremamente elegantes no trato, na educação, com toda a sua autenticidade. O que é um pouco Nemésio também. Debaixo da farpela do professor universitário continuava a ser uma pessoa do povo, uma pessoa autêntica. Para mim os símbolos de Nemésio são o cantador popular e a viola regional da ilha Terceira.
P — Até na morte Vitorino Nemésio foi musical, pediu para se tocar o Aleluia no seu funeral!
LFD — E também a poesia do final da vida é toda ela muito musical. Escolher o Aleluia para ser tocado no funeral é bastante curioso. Pode significar o encontro com o divino, a beleza, a libertação. Por mim, se pudesse escolher uma música para acompanhar o meu funeral escolheria o Requiem Alemão do Brahms. Só não o escolheria porque se chama alemão! Ou escolheria o Requiem do Berlioz, que é empolgante. No caso do Nemésio, agora que penso nisto, vendo bem, a poesia dele é toda uma manifestação de Aleluia, de libertação, de «enfim, a luz»!
P — Nemésio pede para ser sepultado no cemitério de Santo António dos Olivais, em Coimbra. Porque não quis ser enterrado nos Açores?
LFD — Ele é açoriano de nascimento, de formação, mas sobretudo de construção ideológica. Também aconteceu isso com Natália Correia. A partir de determinada altura Natália Carreira começa a descobrir que era açoriana, que tinha alma açoriana, a Mátria… Do ponto de vista profissional e até mesmo como escritor, ele forma-se e afirma-se no continente, em Coimbra, depois em Lisboa, onde vive o resto da vida. A identidade açoriana em Nemésio é uma construção ideológica em que ele encontra uma persona que o distingue dos outros.
P — Mas porquê Coimbra?
LFD — Ele sai de Coimbra e vem para Lisboa não porque não gostava de Coimbra mas por questões lá da Universidade. Não sei se existe no Diário dele ou se existe alguma correspondência privada onde se possa perceber porque é que ele pediu para ser enterrado em Coimbra. Mas não é aquele escritor que faz questão de ir morrer à terra onde nasceu, isso não. A Natália Correia, ou melhor, o Dórdio Guimarães, no testamento dos dois, deixou escrito que queria que as cinzas fossem para os Açores. E lá estão num pequeno monumento que se fez na Biblioteca de Ponta Delgada.
P — A seu ver quem são os grandes discípulos de Nemésio na literatura portuguesa dos séculos XX e XXI?
LFD — Não gosto muito desse conceito de discípulo. Está a referir-se a escritores ou a académicos?
P — Referia-me a escritores. Mas se preferir pode responder pelas duas áreas.
LFD — É aquele tipo de pergunta a que não sei responder, e ainda bem para Nemésio. Nós temos muitos «pessoínhas» mas curiosamente não vejo «nemesiosinhos». Estou a pensar nisto pela primeira vez. Não sei se Nemésio deixou escola. Deixou obra, isso deixou. Não sei se deixou réplicas. Talvez [José] Martins Garcia, mas fica muito no contexto açoriano. Não creio que no contexto da Literatura se possa dizer que há um escritor discípulo ou influenciado por Nemésio. Creio que os grandes seguidores de Nemésio são os leitores que leem os livros dele.
P — Qual foi a grande lição que Vitorino Nemésio deixou a Luiz Fagundes em particular e à Literatura em geral?
LFD — A autenticidade, sem dúvida.