Apresentação do livro “O Essencial sobre José Saramago”
«A GLOBALIZAÇÃO DE ROSTO HUMANO» — Ciclo de Conferências
Apresentação do livro “O Essencial sobre José Saramago”
«A GLOBALIZAÇÃO DE ROSTO HUMANO» — Ciclo de Conferências
- Cultura
- Entrevistas
Entrevista a Irene Marques e a Marcus Vinicius Quiroga, vencedores da 1.ª edição do Prémio IN/Ferreira de Castro
O lusodescendente Marcus Vinicius Quiroga Pereira e Irene Marques, portuguesa a residir em Toronto, Canadá, foram os vencedores ex-aequo, e por unanimidade do júri, da 1.ª edição do Prémio Imprensa Nacional/Ferreira de Castro, atribuído pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda em parceria com o Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal.
Não Viajarei por Nenhuma Espanha, de Marcus Quiroga Pereira, brasileiro, neto de portugueses, e Uma Casa no Mundo, de Irene Marques, tornam-se assim as primeiras obras a conquistar o Prémio Imprensa Nacional/Ferreira de Castro, um prémio instituído em 2019 e dirigido a portugueses residentes no estrangeiro e lusodescendentes. Este é um prémio que visa reforçar os vínculos de pertença à língua e cultura portuguesas e homenagear a grande figura das letras portuguesas do século XX que foi José Maria Ferreira de Castro (1898-1974).
Os trabalhos de Marcus e Irene foram distinguidos de entre mais de 70 candidaturas, cujas proveniências foram muito variadas, entre elas: Irlanda, Suíça, Brasil, Bélgica, Espanha, Luxemburgo, Reino Unido, Alemanha, França, Austrália, Moçambique, Argentina, Canadá e Estados Unidos da América.
O júri, que foi presidido pelo académico Carlos Reis, e do qual fizeram também parte a editora-chefe da Imprensa Nacional, Paula Mendes, e a professora Fátima Marinho, referiu, a propósito da obra de Marcus Vinicius Quiroga, Não Viajarei por Nenhuma Espanha, tratar-se de «um conjunto de poemas congraçados por manifesta unidade temática e estilística, plasmando, desse modo, o que se reconhece como a apreciável maturidade poética do autor. Junta-se a isto a fina sensibilidade do poeta que, fazendo dialogar a poesia com outras artes, constrói um macrotexto com notável riqueza cultural, expresso com rigor formal e cultivando metros com tradição consolidada». No que respeita a Uma Casa no Mundo, de Irene Marques, o júri salientou a «solidez da construção de um relato desenvolvido a partir de temas com grande significado narrativo: a aprendizagem, a memória, a relação difusa com a História.».
Marcus Vinicius Quiroga Pereira nasceu no Rio de Janeiro, em 1954. É poeta, contista, crítico e ensaísta. Doutorou-se em Literatura Brasileira e é membro da Academia Carioca de Letras e do PEN Clube do Brasil. Conta já com 25 livros de poesia publicados, muitos deles premiados. Marcus Vinicius Quiroga Pereira é ainda colaborador de diversas publicações literárias, como o Caderno Ideias, o jornal Rioletras e as revistas Renovarte e da Academia Brasileira de Letras. Marcus Quiroga Pereira descende de portugueses por parte do avô paterno e dos avós maternos, que eram da zona de Viana do Castelo. Já Irene Marques é portuguesa. Emigrou para o Canadá em 1990, aos 20 anos de idade. Hoje é uma escritora bilingue (português e inglês). É autora de livros de poesia, crónica e romance. A par da escrita Irene Marques é também professora universitária nas Universidades de Toronto e Ryerson, onde dá aulas de literatura e escrita criativa. Tem também trabalhos publicados em diversas publicações internacionais no âmbito da pesquisa universitária. É doutorada em Literatura Comparada, tem mestrados em Literatura Francófona e Literatura Comparada, bacharelados em Literatura Francófona e Lusófona e Assistência Social.
Os dois laureados estiveram em Portugal para receber este Prémio, numa cerimónia que se realizou no passado dia 21 de fevereiro, na Biblioteca Municipal Ferreira de Castro, em Oliveira de Azeméis, terra natal de Ferreira de Castro. A cerimónia contou com a presença da Secretária de Estado das Comunidades Portuguesas, Berta Nunes, com os membros do Júri, com presidente da Câmara Municipal de Oliveira de Azeméis, Joaquim Jorge, e com Duarte Azinheira, diretor de edições e cultura da Imprensa Nacional.
Além dos 5 mil euros do valor pecuniário do prémio que receberam os vencedores vão ver já este ano a publicação dos seus trabalhos, com a chancela da editora pública portuguesa, a Imprensa Nacional.
O Prelo esteve, à distânica, a conversar com eles.
Prelo (P) – Como tiveram conhecimento do Prémio IN/Ferreira de Castro?
Irene Marques (IM) – Através de uma colega, a Inês Cardoso, docente do Instituto Camões, que na altura estava a lecionar no Canadá na York University. Aliás, foi a querida Inês a primeira pessoa (e a única, além das editoras para quem enviei, claro) a ler este livro e a dar-me o seu parecer com o seu olho muito atento e leitura minuciosa.
Marcus Vinicius Quiroga (MVQ) – Foi também através de um amigo que mora em Lisboa.
P – E como foi a reação quando souberam que eram os vencedores?
MVQ – Senti-me muito feliz, claro. Todo prémio significa um reconhecimento e, no caso, um reconhecimento por um júri formado por especialistas, o que nem sempre ocorre no Brasil. Já havia recebido vários prémios, mas este é o primeiro dado por outro país, o que dá uma alegria especial.
IM – Fiquei bastante feliz também. A propósito disso acho apropriado contar aqui uma experiência que tive. Um dia, em meados de setembro de 2019, estava eu sentada num jardim de Toronto e vem ter comigo um senhor Sikh de turbante na cabeça.
Aproxima-se e diz: «A senhora tem ar de quem pensa muito.». Eu, meio a brincar disse, pois acho que sim, dizem-me isso com alguma frequência, e que era a própria vida que assim me forçava a pensar. A seguir diz-me que coisas muito boas vão acontecer-me dentro de 2 ou 3 meses e perguntou-me se queria que me lesse a palma da mão. E não é que a primeira coisa que me vem à mente é que iria ganhar este prémio? Chamem-lhe coisas místicas do universo, chamem-lhe coincidência. Chamem-lhe arrogância e presunção da minha parte. Não nos diz o George Orwell, no seu ensaio «Why I write», que todos os escritores são por natureza egocêntricos e portadores de grande vanidade? Mas fiquei muito grata com o prémio na medida em que se trata de um livro que me deu imenso prazer escrever e sentia que tinha qualidade. Lida com assuntos importantes sobre a guerra colonial, o stress pós‑traumático dos soldados que andaram na guerra, a viva rural em Portugal na era do Salazar e depois disso, a questão da classe social, a questão da «fala rural» em Portugal e da oralidade, a questão da emigração, etc.— assuntos que considero importantes abordar na literatura em Portugal, alguns dos quais ainda aparecem muito pouco na literatura portuguesa. Por exemplo, o mundo rural com os seus vários registos de língua local ainda está pouco refletido na literatura portuguesa (claro que há boas exceções como Miguel Torga, José Saramago e José Luís Peixoto). É um mundo que tende a ficar esquecido pelos escritores portugueses ou é descrito de um modo estereotipado que cria um «outro» rural fictício baseado numa perceção errónea que não está consciente do «próprio lugar de onde escreve esse outro»: uma perceção pouco refletida e condicionada por visões urbanistas, de classe, de género (etc.), que revela essa arrogância de quem julga poder falar do outro de modo neutro e objetivo. Enfim, uma postura que demonstra falta de adequada autorreflexão.
P – Qual a importância deste tipo de Prémio para a diáspora portuguesa?
IM – Muito importante. Publicar livros de ficção ou poesia em Portugal (e em qualquer país, devo dizer, incluindo o Canadá, onde vivo) é, nos tempos de hoje, muito difícil e por várias razões, sobre as quais não posso aqui elaborar. No entanto, quando se está fora do país, como é o meu caso, torna-se ainda mais difícil pois que não temos acesso aos mecanismos de publicação, não temos ligações com pessoas do mercado livreiro, que se tendem a ter quando se vive no país. Enviei este livro para várias editoras em Portugal e cheguei a ter mesmo duas ofertas de publicação que nunca se concretizaram. As editoras prometem coisas que depois não cumprem e nem sequer se dignam a dar-nos razões. Tive pareceres muito positivos sempre que enviava este livro para editoras portuguesas mas a resposta era quase sempre a mesma, do tipo: «Um livro de muito elevada qualidade, mas que por motivos financeiros não podemos publicar.» Este tipo de respostas não me parecem totalmente honestas uma vez que essas editoras indicam na sua página da Internet que estão a aceitar livros de novos autores e depois dão-nos estas repostas assim vagas e sem lógica e ética.
Quando indagamos que esclareçam a discrepância, não respondem! Isto claro também acontece em outros países como o Canadá. Julgo também que o mundo literário em Portugal continua de certa maneira fechado (tradicional) e não quer (ou não pode, não sei) arriscar publicar autores que não são bem conhecidos, ou, diria mesmo, autores que vivem fora do país. Existirá, se calhar, também talvez ainda um certo preconceito sobre os escritores que não vivem no país (os emigrantes), portanto este tipo de prémio dirigido especificamente a escritores da diáspora, parece-me bastante adequado e necessário pois que é dirigido a uma população específica, com histórias e visões próprias e únicas que devem ser dadas a conhecer.
MVQ – Como o prémio é aberto também a lusodescendentes, ele permite que portugueses e seus familiares que se encontram fora do país (e o número é significativo), possam participar e, assim, manter viva a língua, digo, a pátria, fundamentando-me na afirmação de Pessoa: «Minha pátria é minha língua». Portanto, todo livro escrito na língua portuguesa (com suas inevitáveis variantes) é território português.
P – Já conheciam a obra de Ferreira de Castro?
MVQ – Tinha lido 3 livros: A Selva, Emigrantes e A Missão.
IM – Confesso que não li ainda Ferreira de Castro. E é curioso porque quando tinha 16 anos escrevi uma história de título «Uma flor do campo» e também concorri a um Prémio Literário Ferreira de Castro para adolescentes que havia na altura e foi-me atribuída uma menção honrosa. Descobri ainda por altura da entrega do prémio no dia 22 de fevereiro, em Oliveira de Azeméis, através do presidente da câmara da cidade, Joaquim Jorge, que eu e o Ferreira de Castro nascemos no mesmo dia: 24 de maio, embora ele tivesse nascido em 1898 e eu em 1969. Ambos emigrámos, também. Portanto, se calhar existe uma ligação qualquer cósmica entre nós. E lá estou eu outra vez a entrar na epistemologia mística. Na altura da entrega do prémio foi lido um trecho do livro Emigrantes de
Ferreira de Castro do qual muito gostei, particularmente desta frase, «Tinham pão, mas queriam mais», uma frase que depois usei na breve intervenção que fiz durante a cerimónia, quando disse que «escrevia porque tinha pão, mas queria mais», no sentido em que a literatura me permite viver vidas e explorar mundos que a realidade não me permite fazer, ampliando assim a minha vivência, a minha existência, a minha compreensão do mundo, de mim mesma, daqueles que são diferentes (e daquilo eu é diferente) de mim, pois considero que a literatura é um meio de obter conhecimento. Como diz a filósofa norte-americana Martha Nussbaum, «A vida não nos oferece oportunidade de viver suficientemente. Sem ficção, a nossa experiência vivencial é muito limitada e muito paroquial.». Ou como diz Fernando Pessoa, «A literatura, como toda a arte, é uma confissão de que a vida não basta.». Fiz recentemente alguma pesquisa sobre o tipo de escrita de Ferreira de Castro e sendo a sua escrita de veia realista e social, acho que temos isso também em comum, pois também diria que a minha escrita tem uma forte vertente realista e social, embora se trate de um realismo «mais mágico».
P – Desses três livros que leu, qual é o livro favorito Marcus. E porquê?
MVQ – A Selva, não por ser o seu livro mais famoso, mas por se referir ao tempo em que o autor viveu no Brasil e tratar de questões políticas.
P – Irene, ficou com curiosidade de ler os livros de Ferreira de Castro?
IM – Sim, quero ler A Selva e Emigrantes.
P – Que balanço fazem da vossa estada em Portugal por ocasião de cerimónia de entrega do Prémio IN/Ferreira de Castro?
IM – Foi uma experiência muito positiva. Senti que todos os representantes da Imprensa Nacional-Casa da Moeda e do Ministério dos Negócios Estrangeiros nos receberam de forma muito calorosa, íntima e personalizada incluindo o Diretor da Imprensa Nacional, da Unidade de Edição e Cultura, Duarte Azinheira, a Dr.ª Berta Nunes, Secretária de Estado das Comunidades, a Catarina Paiva, a Tânia Pinto Ribeiro e muitos outros. Os representantes da Câmara Municipal de Oliveira de Azeméis, incluindo o Presidente de Câmara, Joaquim Jorge, também foram muito calorosos. Achei muito adequado os membros do júri (Professor Carlos Reis, Dr.ª Paula Mendes e Professora Doutora Fátima Marinho) estarem presentes na cerimónia de entrega do prémio em Oliveira de Azeméis e apreciei imenso o discurso do Professor Carlos Reis sobre o prémio que achei muito medido e honesto. O Presidente da Câmara de Vouzela, que é o meu concelho, Rui Ladeira, e a vereadora Carla Maia também estavam presentes e foram de igual modo calorosos. Fico muito grata a todos.
MVQ – Em primeiro lugar, a satisfação pelo prémio e pela oportunidade de ter contacto com pessoas como Catarina Paiva, Berta Nunes, Tânia Pinto Ribeiro, Duarte Azinheira, Paula Mendes, Joaquim Jorge e Carlos Reis (por ordem de entrada em cena). Depois, pude, em 3 semanas, reencontrar amigos, rever várias cidades e conhecer outras. Parti, quando o número de infetados em Portugal ainda era bem pequeno e, praticamente, restrito aos norte do país. Não posso negar que a pandemia mudou tudo, mas a estada foi muito agradável, pois ainda não havia quarentena nem mortes.
P – Qual é a vossa relação atual com Portugal? Que relação mantêm com o país?
MVQ – Tenho três avôs portugueses. Um avô morreu antes de eu nascer; já os outros dois sempre foram muito próximos. E, por circunstâncias familiares, dos 13 aos 20 anos, morei na casa deles. Durante 7 anos, vivemos só os três juntos. Portanto, tive oportunidade de ouvir histórias de minha avó sobre a infância e adolescência em Viana do Castelo e de imitar-lhe o sotaque, para fazê-la rir. Além disso, a maior parte da geração de meus avós era portuguesa. Logo, durante muito tempo, o convívio com portugueses era semelhante ao convívio com brasileiros. Também estudei literatura portuguesa durante seis anos e depois continuei lendo autores portugueses e africanos (que nós também consideramos portugueses) por conta própria. E vários romancistas, além dos clássicos, são editados atualmente no Brasil. Além, obviamente, de Saramago, temos Mia Couto, José Luis Peixoto, Gonçalo Tavares, Walter Hugo Mãe, Eduardo Agualusa, Pepetela e tantos outros…
IM – Emigrei para o Canadá em 1990 com 20 anos de idade, sozinha. Venho de uma família muito grande pois que a minha mãe teve dez filhos e costumo ir a Portugal uma vez por ano durante mais ou menos duas semanas. Mais do que isso não sei se me agradaria muito e não sinto necessidade de viver em Portugal ou de regressar permanentemente. No entanto, a ligação afetiva com o país é bastante forte e aliás este livro, Uma Casa no Mundo, é indício disso dado os assuntos que foca. Lembro-me que na altura que comecei a escrever este livro estava para começar a escrever um romance em inglês, mas depois comecei a ler muita ficção em Português e a língua portuguesa começou a chamar-me muito, a querer sair de mim (no sentido de chamar-me para a escrita), a querer que eu a visitasse a sério, muito a sério. Foi também nessa altura que o escritor José Luís Peixoto veio ao Canadá e eu comecei a ler os livros dele e senti enorme necessidade de escrever um livro em português. Eu quis também falar desse mundo (rural) começando por aquilo que eu sabia desse mundo tendo crescido numa pequena aldeia da serra do Caramulo. Queria recriar esse mundo rural baseado na minha vivência pessoal, nas histórias que ouvi da minha mãe, da minha avó, do meu pai, das pessoas daquele lugar… Os meus dois irmãos mais velhos foram para a guerra colonial (Guiné Bissau e Angola) e eu ouvi muitas histórias sobre isso, contadas pela minha mãe (de lágrimas nos olhos e com voz «quebrada») sobre aqueles rapazes todos que partiam para defender uma África que afinal não era nossa. Tendo eu nascido em 1969 ainda vivi essas coisas mais ou menos de perto ou pelo menos ouvi falar muito delas. Além disso, a minha formação e pesquisa académicas tendem a focar o continente Africano, processos de colonização e a descolonização, questões raciais, e, portanto, queria explorar essas temáticas de um modo criativo, num romance, porque explorá-las num romance não é a mesma coisa que explorá-las num trabalho académico. O romance, a escrita criativa permite dimensões que outro tipo de linguagem não permite. Todas estas temáticas são exploradas no romance de um modo ou outro. Trata-se, portanto de um romance histórico baseado em pesquisas e tem um personagem (um Médico que vai para a guerra colonial) que aliás é baseado no escritor António Lobo Antunes e principalmente na pessoa dele tal como transparece em Cartas da Guerra. D’este Viver Aqui Neste Papel Descripto.
P – Este não é o vosso primeiro trabalho publicado. Resumidamente podem falar-nos dos anteriores que já publicaram?
IM – Tenho três livros de poesia publicados no Canadá: Wearing Glasses of Water, The Perfect Unravelling of the Spirit e The Circular Incantation: An Exercise in Loss and Findings e o romance My House is a Mansion. Tenho ainda uma coleção de crónicas Habitando na Metáfora do Tempo: Crónicas Desejadas, publicada em Portugal em 2009 por Edium Editores, uma editora que acho que já não existe e com a qual tive péssima experiência. O meu segundo romance em inglês Daria sairá em 2020 no Canadá pela Inanna Publications/York University. De entre as minhas publicações académicas destacam-se os livros Transnational Discourses on Class, Gender and Cultural Identity e Critical Approaches Vol. 1: The Works of Chin Ce e diversos artigos em revistas e coleções internacionais, nomeadamente, African Identities: Journal of Economics, Culture and Society, Research in African Literatures, CLCWeb: Comparative Literature and Culture, Journal of the African Literature Association, African Studies, A Companion to Mia Couto, The InterDISCIPLINARY Journal of Portuguese Diaspora Studies e Letras.
Em traços gerais diria que a minha escrita criativa se entrelaça com os meus interesses académicos centrando-se em questões de identidade pessoal, o papel do mítico e o místico na compreensão, formação e realização do «eu», do mundo e do universo, sincretismo cultural, questões de género, raça, império, classe social, as guerras coloniais portuguesas em África e o regime salazarista. As minhas obras tendem a ter um caráter universal atravessando fronteiras geográficas e culturais e debatendo temas existenciais que nos coletivamente. Considero que a minha escrita é movida por um profunda qualidade inquisitiva onde o ser humano aparece como entidade envolvida numa perseverante, senão mesmo obsessiva, busca de realização e plenitude — busca esta que é sistematicamente interrompida pela realidade vivencial e pela crueldade e miopia do «sociopolítico», essa feroz máquina social que a todos nos limita, divide, fragmenta e humilha, relegando para segundo plano aquelas nossas inteligências holísticas de índole não racional que nos permitem obter um conhecimento mais fundo da realidade e de nós mesmos. Abunda na minha ficção, a alegoria, o realismo mágico e o lirismo, aquilo a que eu designaria de «poéticas sublimes do inconsciente», inteligências que vão muito além do racional e que nos querem dar a ver o mundo, o universo e o «eu» de forma mais plena, permitindo desse modo uma suspensão momentânea e simbólica da nossa incompletude.
MVQ – Como a maioria de meus livros tem unidade temática, posso dizer que já tratei de pintores (Van Gogh, Frida Kahlo, Cézanne, Portinari…); já dialoguei com obras de outros poetas brasileiros (Carlos Drummond de Andrade, João Cabral, Ferreria Gullar…), com a arte barroca, com o cinema, o teatro. Deste modo, posso dizer que minha obra é bastante intertextual e o livro do concurso – Não Viajarei por Nenhuma Espanha – não foge à regra e há vários poemas sobre Cervantes e D. Quixote.
P – São os dois professores. É fácil conciliar a escrita com o ensino?
IM – Dou aulas de literatura e escrita criativa na Universidade e trabalho a contrato. Por vezes não é nada fácil conciliar a escrita com o ensino, mas obviamente é difícil ou impossível mesmo viver só da escrita. Mas também gosto muito de fazer trabalho de investigação no domínio da literatura e o meu trabalho na Universidade permite isso. Tenho um doutoramento em literatura comparada com foco em literaturas em inglês, francês e português e dou aulas que abrangem uma considerável variedade literária o que me leva a ler autores muito diversos, de várias épocas, proveniências e estilos, expondo‑me a vozes variadíssimas e julgo que isso enriquece a minha escrita permitindo‑me aprender com todas estas vozes do mundo, que me vão influenciando de um modo ou outro, ajudando a expandir a minha «língua». Acredito que é importante ler muito para se escrever bem e sempre digo isto aos meus alunos de escrita criativa que às vezes vêm para a aula a pensar que vão aprender a fórmula mágica para escrever de modo perfeito e estão pouco dispostos a ler! Ainda que acredite que o talento (ou a aptidão natural) já está de certo modo dentro das pessoas, mas depois tem que ser nutrida, desenvolvida.
MVQ – Não. Quando eu era professor em tempo integral, era bem difícil, pois o magistério exige exaustivo trabalho em casa, sobrando pouco tempo para escrever. Depois que me aposentei, pude ir «em busca do tempo perdido» e dediquei-me muito mais à literatura. Publiquei 26 livros e faço parte de duas instituições literárias importantes aqui: a Academia Carioca de Letras e o PEN Clube do Brasil.
P – Que autores portugueses são mais acarinhados pelos seus alunos?
MVQ – Fernando Pessoa, Eça de Queirós e Saramago…
IM – Não sei se posso responder bem a esta pergunta uma vez que grande parte das aulas que dou não são necessariamente sobre literaturas em português. No entanto, quando dou aulas em inglês, incluo com alguma frequência autores que escrevem em português, como Clarice Lispector, Mia Couto e Fernando Pessoa (em tradução) e os alunos tendem a gostar muito da Clarice Lispector.
P – Como e quando começou a vossa aventura literária? Primeiro a leitura, depois a escrita.
IM – Diria que foi aos 7 anos quando aprendi a ler e a escrever na escola primária de Covas do Monte, uma aldeia ao lado daquela onde nasci, uma daquelas escolas de cal branca dos anos 70 com uma sala só para todas as classes (da 1.ª classe à
4.ª classe), que depois do 25 de Abril ficou pintada com aqueles cravos vermelhos e aquelas frases incendiárias e esperançosas sobre a liberdade que nos tinha finalmente chegado. Quando descobri os símbolos da escrita, a letra que formava a palavra, a palavra que formava a frase e depois o parágrafo e depois a história, era como se estivesse em terreno mágico, que me dava acesso a tudo, onde podia criar mundos e ser aquilo que não era, sentir aquilo que não sentia, viver aquilo que não vivia. Era um mundo sem limites, que me fazia sair do meu espaço imediato, do meu corpo — corpo este que estava enclausurado na pequenez de um mundo físico, material e limitado — e voar, habitar uma outra dimensão. Nesse sentido, a escrita e a leitura são para mim algo de profundamente espiritual e transpessoal que me permite sair fora de mim para me encontrar com tudo e todos e nesse processo ficar mais eu, mais realizada, menos solitária. Como disse Virgínia Woolf, o livro (a ficção) «divide-nos em duas partes» e permite-nos «eliminar o ego» permitindo ao mesmo tempo uma «união perpétua» com outros, com tudo, e todos. Isto reflete também aquilo que disse anteriormente em relação às características da minha escrita, ou seja, a ficção (o ato de escrever ou ler ficção) permite a suspensão momentânea e simbólica da nossa incompletude e faz-nos sentir completos, habitando uma espécie de plenitude ontológica. Depois à medida que fui crescendo, esse namoro, ou melhor, esse grande amor, para com a palavra, para com a escrita, para com a leitura foi sempre crescendo. Era uma necessidade constante, uma obsessão que sempre me chamava, embora claro, muitas vezes tivesse que ter sido posta de lado, porque havia tantas outras coisas a fazer, a provar a mim mesma, a provar ao mundo. Diria que comecei a escrever mais sistematicamente e de forma mais aplicada por volta dos 30 anos quando estava a fazer o meu doutoramento.
MVQ – Meu interesse pela palavra foi despertado pelas letras de música, pois, por coincidência na minha puberdade-adolescência havia letristas muito bons. Como não tinha talento para a música (apesar de escutar música todos os dias), fui para a poesia e, depois, para o estudo da literatura. Mas acho que tenho influência de outras artes, porque também estudei teatro e cinema.
P – Onde vão buscar a inspiração?
MVQ – A exemplo do António Lobo Antunes, costumo citar a frase de Picasso: «Que a inspiração chegue não depende de mim. A única coisa que posso fazer é garantir que ela me encontre trabalhando.» Ou seja, busco ideias nos livros, nos filmes, nos discos, nos quadros. Acredito no estudo e no trabalho, mais do que na inspiração.
IM – A inspiração vem-me de muitos lados. Primeiro, escrever é necessário para que eu me sinta maior do que sou, para sair do paroquialismo existencial, da solidão, da incompletude. Isto em si será a minha grande motivação, a minha grande inspiração. Por outro lado, e como também já referi, escrever é um ato que esclarece, que permite obter conhecimento, iluminação, entender o mundo, o universo, o «eu» de melhor forma mesmo que se saiba que o conhecimento total jamais será alcançado, e também se fosse se calhar parávamos de escrever. Escrever é procurar constantemente, tentar desvendar mistérios através de uma língua (linguagem) que é incapaz de fazê-lo, uma língua com a qual se brinca, uma língua que se manipula para que nos possa dar acesso (algum acesso) ao conhecimento, a novo conhecimento, a visões que ainda não temos. Para mim a escrita constitui o mais profundo modo de comunicar, tenho essa necessidade profunda de comunicar com o outro, de proporcionar ou tentar proporcionar, através da magia que a linguagem literária possui, uma outra visão das coisas, um outro modo de ver, ser, sentir e estar no mundo. Julgo que nenhuma outra linguagem pode, ou sabe fazê‑lo, tão bem. Como se diz em inglês, «the medium is the message». Uma nova linguagem permite uma nova visão do mundo. A motivação vem-me também de querer contar histórias de pessoas cujas histórias ainda pouco foram contadas, histórias de pessoas como a minha mãe, a minha avó, o meu pai, etc., o querer recriar mundos que ainda foram pouco retratados ou retratados de forma inadequada, como já mencionei. Lembro-me da minha mãe, por exemplo, contar histórias da vida dela e da mãe dela e de outras pessoas que ela conhecia com grande entusiasmo, de repetir essas histórias muita vez com grande luminosidade nos olhos, como se quisesse que essas histórias não fossem esquecidas, não morressem com ela. É daí que me vem também a minha inspiração: a necessidade que sentia nela, que ouvia na voz dela, que via nos olhos dela, sobre a importância daquelas vivências.
Diria ainda que tenho esta ideia e é uma ideia que tenho desde bastante nova, que existe uma forte relação entre escrever (e ler) e igualdade e paz social. Acho que se escrever bem, a sério e com grande honestidade e se depois formos lidos, o mundo vai ficar melhor, as pessoas vão se entender melhor umas com as outras, vão empatizar mais umas com as outras, vão perceber melhor as desigualdades sociais e o modo como as instituições funcionam e vão trabalhar, agir de modo a mudar esse mundo e fazê-lo melhor. Como sabemos, havia nos finais do século XIX e pelo menos na primeira metade do século XX, uma grande relação entre a ficção (o romance) e a igualdade social. O escritor via-se como interveniente social, aliás Ferreira de Castro caberia nessa categoria sendo a sua escrita de cariz realista e social. Isso ainda continua hoje, ainda talvez não de modo tão direto. Será isso que também me motiva, me inspira. Claro que o que também me inspira são os momentos de grande angústia e de dúvida que me afetam. Escrever alivia a angústia, a dor, o sofrimento, é um ato terapêutico. Escrever salva mesmo, diria. Diria ainda que escrevo muito em momentos de angústia. Portanto a angústia inspira! Tendo tudo isto em conta, diria, pois, que a minha inspiração, ou melhor a minha motivação, tem uma vertente pessoal, mas depois tem uma outra vertente de cariz social, coletivo, ideológico que acaba por ter a mesma importância, ou mesmo mais importância. Afinal quando nascemos já existe mundo, já existe língua, já existe ideologia, já existe dor, e escrevemos a partir daí — nunca estamos «limpos» do outro, dos outros, nunca somos só nós.
P – Se tivessem de escolher apenas um autor português de eleição qual escolheriam e porquê?
IM – Uma pergunta à qual não sei responder, porque «um» seria muito pouco e o amor pela palavra, o amor à palavra, tem sempre que dividir-se, porque ninguém sabe dizer tudo, pode dizer tudo e a aprendizagem vem de muitas mestras, de muitos mestres. Podia começar por Miguel Torga ou José Saramago ou António Lobo Antunes. Mas depois não posso deixar de fora a Sophia de Mello Breyner que tem aquela língua límpida, limpa e clara que me faz sentir líquida e fora de mim para melhor em mim habitar. Ou a Maria Gabriela Llansol com os seus dizeres fundos e enigmáticos que me põem a ponderar sobre o absurdo do tudo e do nada, o absurdo das coisas que são aquilo que não são, tentando recuperar aquilo que elas deveras são. Ou a Teolinda Gersão com a sua leveza que me deixa estonteante durante horas a fio como se andasse a pairar em cima do mundo e a observar tudo de longe, uma deusa em plena levitação. E depois existe a inigualável Clarice Lispector (Brasil) que usa a língua portuguesa como só ela o sabe fazer, deixando tantas perguntas a dançar-nos no ser, perguntas sem resposta que nos empurram para um vácuo por vezes belo, por vezes medonho. Para já não falar na mestria do Mia Couto em relação a Moçambique. E existem tantos outros e tantas outras. Impossível nomear só um, só uma.
MVQ – Fernando Pessoa. Sei que é uma resposta previsível, mas é verdadeira, pois, desde a adolescência, li muito os seus poemas, vi peças com seus textos, ouvi cd’s.
P – Qual a importância de publicar em Portugal?
MVQ – O primeiro livro em Portugal é uma grande satisfação e traz a expetativa de imaginar como será a obra lida pelos portugueses. Espero que os leitores tenham o «bom gosto» dos jurados e que outros livros se editem, em seguida.
IM – Publicar em Portugal é bastante importante para mim, porque esse país também é meu, foi aí que nasci, foi aí que vivi até aos 20 anos, foi aí que formei a minha primeira consciência sobre a vida, sobre o mundo, sobre a minha família, sobre o meu (o nosso) lugar no mundo. Foi aí que tive experiências muito marcantes e nem sempre positivas. Foi aí que começou a minha grande paixão pela escrita e pela língua portuguesa. Além disso, dado que escrevo sobre assuntos relativos à história e sociedade portuguesa, acho importante ser publicada em Portugal.
P – Já tinham tentado publicar anteriormente?
IM – Como já mencionei, enviei este livro para várias editoras em Portugal e como também referi é muito difícil publicar em Portugal, principalmente quando não se vive no país e não se é conhecida. Em relação a
o outro livro que publiquei em Portugal, Habitando na Metáfora do Tempo, uma coleção de contos, publicada por Edium Editores, como também já disse, tive péssima experiência.
Tenho três outros livros em português (dois romances e uma coleção de contos) que também queria publicar em Portugal.
MVQ – Eu não.
P – Todos nós desenvolvemos uma relação pessoal com a escrita. O texto nasce sempre de um processo de escrita. Qual é o seu processo de escrita?
MVQ – Ao contrário, talvez da maioria, penso na elaboração de um livro de poemas como unidade, e não como uma reunião de poemas dispersos. Logo, dedico-me ao estudo daquele tema e planejo o livro em sua totalidade. Por exemplo, em Autoestrada para Tebas, procurei pôr em versos o sentimetno trágico das peças gregas.
IM – Eu acho que já respondi a esta pergunta de um modo ou outro. Eu escrevo por motivos variados: a minha inspiração, a minha motivação, tem uma vertente pessoal e ontológica, mas também tem uma vertente social, coletiva, ideológica. Escrevo por profunda necessidade, obsessão diria mesmo. Escrevo quando estou triste, quando estou aborrecida, quando quero saber mais sobre mim, sobre os outros, sobre o mundo, sobe o universo. Não tenho um ritual específico para escrever: quando preciso, posso escrever em qualquer lado, a qualquer hora do dia ou da noite. Embora, às vezes, também tenha que me forçar para escrever e arranjar tempo para fazê-lo e nem sempre posso escrever quando quero porque tenho outros trabalhos a levar a cabo. Mas quando a necessidade funda vem, arranjo modo de escrever. Lembro-me que houve uma altura em que me levantava todos os dias às seis da manhã para escrever pelo menos duas horas antes de ir trabalhar porque essa era a única hora em que podia fazê-lo e durante o dia trabalhava num hospital.
P – Irene, o que os portugueses podem esperar de Uma Casa no Mundo?
IM – Existe no romance, ou assim o julgo, uma grande variedade de voz, de pensamento poético e ontológico. Existe uma linguagem a querer transmitir algo para além da linguagem: a verdade pura das coisas. Como disse anteriormente: «The medium is the massage» sendo que uma nova linguagem permite uma visão fresca do mundo. O romance, que poderá ser classificado como romance histórico, explora acontecimentos históricos específicos decorridos entre os fins do século XIX até depois da revolução de abril. Encontramos aqui muito mundo e muita gente: agentes da Pide, criminosos em degredo nas colónias, soldados jovens e idealistas encarcerados no mundo opressivo e violentíssimo da guerra colonial na Guiné-Bissau e em Moçambique que escrevem cartas profundamente relevadoras, generais de guerra brutos, cómicos e psicopatas, a abjeta miséria física e psicológica dos colonizados e colonizadores, mulheres abusadas por uma sociedade profundamente patriarcal e católica, meninos deficientes que têm uma visão do maravilhoso que no mundo existe, amor inter-racial, um Papa sui generis que perdoa a uma mãe solteira as suas desventuras à Maria Madalena, a vida árida dos nortenhos nas searas do Alentejo e muito mais.
P – Marcus, o que os portugueses podem esperar de Não Viajarei por Nenhuma Espanha?
MVQ – É uma obra que fala de três espanhóis (Cervantes, Garcia Lorca e Buñuel) e de um grego que pintou na Espanha (El Greco). Creio que as peças de Lorca também «sejam» portuguesas (A casa de Bernarda Alba, Yerma…), porque são, antes de tudo, ibéricas. Na verdade, valho-me do personagem D. Quixote, de Miguel de Cervantes, para pensar a utopia, a arte, as visões diferentes de se olhar para a realidade e transformá-la.
P – Posso saber quem foi a primeira pessoa a quem deram a ler este vosso trabalho?
MVQ – A um casal de amigos que, na ocasião, morava em minha casa, porque a deles se encontrava em obras. Estava entusiasmado com o término do livro e contei-lhe do que se tratava. Depois, mostrei-lhes parte da obra. Curiosamente os dois membros deste casal são filhos de portugueses.
IM – À minha amiga, Inês Cardoso.
P – «A palavra de um poeta é a essência do seu ser.», disse Alexandre Pushkin. Concorda Marcus?
MVQ – Para um poeta, a palavra é ferramenta e, ao mesmo tempo, matéria, a sua matéria. Mais do que o prosador, o poeta escolhe as palavras e as modifica, pois sabe que sua obra não é feita de ideias somente, como nos lembrou Mallarmé, mas de palavras. Por isso, a tradução da maioria dos poemas é traição, transcriação. Ou seja, a tradução de um poema produz um poema diferente.
P – Voltando a Virgina Woolf , esta diz-nos que «O poeta entrega-nos a sua essência, mas a prosa toma a forma de todo o corpo e de toda a mente». Concorda, Irene?
IM – Eis uma questão complexa. Eu escrevo muita poesia. Diria mesmo que a poesia me vem e sempre me veio muito facilmente: é como uma voz que está ali a querer sair de mim e é só preciso eu estar disposta a transferi-la para o papel. É como se eu fosse só o canal por onde ela passa: uma corda de condução por onde a magia da palavra, esta palavra especial, quer passar (e também passear). Como se eu estivesse a escrever ao comando de uma entidade superior que me usa para esse fim. Se calhar a isto chama-se o escrever com todos os sentidos, com o espírito, com o corpo, com todas essas inteligências que são mais inteligentes do que o saber racional, que enxergam além do racional, escrever comandada pelo inconsciente, sem muito pensar, o que nos permite sair da superficialidade e do mecanicismo da língua, da gramática e da visão que temos das coisas, do mundo, das pessoas, para resgatar a pureza dessas coisas, desse mundo, dessas pessoas, a sua magia, a sua essência e nome antes de nós as designarmos. Mas isso também me acontece por vezes quando escrevo prosa (romance) e além disso diria ainda que a minha prosa é muito poética. Não sei mesmo se podemos fazer uma distinção nítida entre a prosa e a poesia: a poesia está presente na prosa e a prosa também está presente na poesia, pelo menos no que diz respeito à minha escrita. Muitos dos meus poemas são histórias de alto lirismo e a minha prosa pode ser por vezes um vasto poema de histórias entrelaçadas. Uma Casa no Mundo não fica de certo modo muito longe disso. Diria, no entanto, e nesse aspeto concordo de certo modo com Virginia Woolf, que quando escrevo um romance tenho que prestar mais atenção à estrutura, às personagens, ao diálogo dessas personagens, ao cenário da ação, à ligação entre todas as partes para formar um todo coerente, unificado. Isso requer uma certa atenção que a poesia se calhar não requer, ou pelo menos não da mesma maneira, a não ser que se trate de uma coleção onde existe uma coerência e estrutura específicas, onde cada parte depende da outra ou está ligada à outra de modo muito específico, como me parece ser o caso do livro de Marcus Quiroga, Não Viajarei por Nenhuma Espanha, tendo em conta o que ouvi sobre o mesmo. O livro de T. S. Elliot, The Waste Land, seria outro exemplo. Neste tipo de poesia parece-me que a escrita «toma a forma de todo o corpo e de toda a mente [e mesmo de todo o espírito e de todo o ser]» e exige um trabalho semelhante ao do romance e de certo modo até mais difícil uma vez que o poeta escreve através da alegoria, sendo que a alegoria pode ser vista como a tradução do mundano para uma outra linguagem mais inovadora, mais elevada, transformando o poeta em magnânimo tradutor, o tradutor par excellence. No que me diz respeito, diria ainda que escrever um romance requer mais tempo e mais devoção sucessiva e sistemática no sentido em que há medida que vou escrevendo vou descobrindo para onde as personagens querem ir, que tipo de resoluções vão tomar, como vão lidar com os problemas com os quais se deparam, como é que os vários aspetos do livro se vão enquadrar uns nos outros, etc. Se se trata de um romance com uma vertente mais histórica, há também pesquisas que se devem fazer. Quando escrevo poesia, faço-o para captar momentos de beleza singular, lidar com e expressar estados de espírito específicos, emoções de grande profundidade ou visões transcendentais, e nesse sentido talvez escrever poesia não «tome a forma de todo o [meu] corpo e de toda a [minha] mente» como nos diz Woolf, ou pelo menos não do mesmo modo e não ao mesmo tempo.
P – Marcus…
MVQ – Para mim, as duas afirmações, ao fazer uso de termos como essência, corpo e mente, permitem várias divagações. Sendo, no entanto, mais objetivo (ou tentando), diria que tenho olhares diferentes, quando escrevo poesia ou prosa. Reconheço que minha mão tende naturamente para a poesia, ainda que eu também escreva contos e crônicas, e não vejo superioridade de uma modalidade sobre a outra, como a escritora inglesa parece insinuar. Receio palavras tão abstratas como essência e prefiro dizer que a criação me exige diferentes formas, expressões e tratamentos. Já publiquei livros de poemas que são «prosa poética» (Fazer-se Frida) ou «pura prosa» (Jardim das delícias).
Texto: Tânia Pinto Ribeiro
Imagens: Câmara Municipal de Oliveira de Azeméis
Publicações Relacionadas
-
Novidade editorial | O Resto do meu Nome, de Alexandra Barreiros
14 Fevereiro 2023