Há demasiadas razões para não gostar de um livro. Confesso que pensara já as ter experimentado todas. Mas afinal não. Há sempre uma coisa nova que nos desgosta. Será do avançar da idade?
É claro que o desgosto é concomitante. Às vezes é a capa, ou o layout do miolo – tipo de letra, entrelinha e afins. Só ou acompanhados por uma má revisão, uma tradução sofrível ou uma impressão descuidada. E, quando nos chegam às mãos livros mal impressos a quente (que é como se imprimem os que se dizem «da impressão digital»), a capa mal acabada porque mal colada. No fundo, há problemas práticos – os que têm a ver com o produto – e substanciais – os que têm a ver com o texto em si. Como já disse aqui certa vez, o que me chateia mesmo é o desfasamento.
Livro de maravilhoso papel, bom layout, capa maravilhosa; bem traduzido, interessante, bem escrito. Ora aí está, pensava eu, o livro-modelo. Pois bem, acabou de me aparecer uma coisa que, sabendo bem o que é, nunca me surgira tão valorizada: um livro mal editado.
Antes, uma explicação paradoxal. Na língua portuguesa costumamos ter dez palavras para dizerem o que os ingleses, na sua língua, dizem numa. E isso, convenhamos, é um elogio ao Português. Para um escritor, ter mais matéria-prima ajuda e muito. Além de que, para um povo, a ideia de mais vocábulos tende a estar ligada a mais inteligência. Ou é só nas crianças e o povo português inventou palavras mas não fez o devido uso cerebral delas? Talvez seja isso…
Pois bem, neste caso não. Apenas temos uma palavra para dois conceitos muito diferentes na língua inglesa. Talvez porque, na tradição portuguesa, um deles seja muito, muito recente. Falo em «publisher» e «editor» que, na lusitana pátria se diz «editor». Por isso, quando lá em cima disse «mal editado» poderia querer dizer duas coisas. E sim, queria dizer editado na versão inglesa.
Tentando simplificar: «to publish» diz respeito à edição do livro; «to edit», à edição do texto (ou, como no caso que me surgiu, da organização do texto). A maior parte dos editores em Portugal são «publishers», não trabalham a edição de texto. Só há talvez uns quinze anos se tornou norma esse trabalho sem que o autor português se sinta ofendido por um editor lhe estar a dizer «este capítulo está a mais»; «este parágrafo não faz sentido»; «falta aqui uma explicação». (O trabalho da Maria do Rosário Pedreira, primeiro na Temas e Debates e agora na Dom Quixote, foi fundador.) Finalmente se importaram para a edição portuguesa estes bons hábitos anglo-saxónicos, o que permitiu desempoeirar – muito para contragosto de alguns críticos iluminados – as estantes das livrarias.
No caso de que falo, A Terra Inabitável, o problema está na edição.
Comecei o livro com pé atrás, tenho de o dizer. Aquelas primeiras páginas de encómios tiraram-me logo do sério porque fazem de um livro sério um produto demasiado comercial. Sou muito a favor de vender livros, tenho-o demonstrado desde sempre. Mas essa é uma tradição anglo-saxónica que não quer ver importada: o livro começar com «praise for…» não sei o quê. Chegam-me as citações do «California Standard Weekly», mesmo quando inventadas.
Mas depois os dois pés entraram e a leitura fez-se. Tenebrosa e escorreita, dado o tema do Aquecimento Global: o que nos acontecerá se continuarmos a transigir? No entanto, a edição… Não gostei nada, mas mesmo nada da organização. E isso nunca me tinha acontecido com esta força. O livro está divido em catástrofes, o que até parece bem à partida. Mas depois, dentro de cada uma («incêndios», «cheias», «fome», «calor», etc.), há sempre a mesma lenga-lenga: se a temperatura subir 2º centígrados, acontece isto; se subir 3º acontece aquilo; e se subir 5º acontece outra coisa. E nós sempre a tentar ligar os 5º com os 2º da catástrofe anterior.
Imagino na editora original alguém a falar com o David (Wallace-Wells, o autor que só pode ser excelente, dado ter um hífen no nome):
– Queres pensar o tema pelas catástrofes ou pela subida de temperatura? – perguntou o editor.
– Talvez pelas catástrofes – respondeu David.
e assim se ter feito um best-seller mundial.
Onde está então o erro? Talvez no facto de, se tivesse sido pela temperatura o best-seller fosse ainda maior. E, principalmente nisto: um editor nunca pergunta uma coisa dessas. Diz:
– Divide a coisa pelas temperaturas, que assim as pessoas percebem melhor.