VERSOS QU’O PAI QUE FOI P’Ó TRABALHO FEZ À SUA FILHA
Tanta frieza, inha mãe!
Incarrilha-s’ êste inverno:
Ei! Tantas lamas que teem
As istǐradas do rovêrno!
Greta-s’os pézes. E a lũa
É nova: têmos-ĕa feita!
Dês a medre e a faça nũa
Talhada só, forte e bũa,
Nacendo sã-iscorreita.
Parece o paúl da Praia
O sarrado da luzerna.
Não há nem pisca na baia,
Mins ê nã sei se lá vaia,
Qu’ia cobrando ũa perna.
A gente só tem bandalhos
Que nem bandeiras do bodo.
Ist’é que são uns trabalhos!
P’í a-fora, nos atalhos,
A gente alaga-se todo.
Inda mal loze o biraco,
E toca a mundar a ǐeito,
C’o pão de milho no saco.
Isto faz dar o cavaco,
Mins é mundar, e cum geito.
Cando não, mê pai dá fé
De qu’a gente é calaceiro:
— Anda, Pedro, pũi-t’a pé,
Qu’o carneiro mocho inté
Já s’aluvanta prumeiro.
Maria, eh moça, que fazes?
Nã desapegas do qŭente.
Vê lá que pão é que trazes;
Toma tino, qu’os rapazes
São todos três de bum dente.
E agora, bota sintido,
Nã fiques comã ismalmada,
Que já te tens divertido:
Qué-s’êsse milho iscolhido
E essa bezerra tratada.
A gente torna de brebe
E qué ver já tuǐdo pronto.
O cordeiro alvo da neve,
Não há ninguêm que lo leve,
Anda por í comã tonto.
E ó mei-dia, eh ř’paria,
Anda cá, nã sei se m’oives:
Qué-s’ũa bũa papia
De farinha alva e macia
Pǎ vê se s’ingana as coives.
Tês irmãos hoj’ veem mais cedo,
Qu’é pǒ via da toirada.
Deixá-los ir ó fòlguedo!
Vai se qués, nã teinas medo,
Que ficas bem arrumada.
Mins toma tento na bola,
Nã vaias fazê toliça;
Qu’ê já sei qu’o meste-iscola,
Qu’é filho do bate-sola,
Há ǐanos que te derriça.
Mins se topars algum moço
Da tua abetuaduira,
Nã le vires o piscoço:
Ruim cão que vê um osso
E nã lo passa à fressuira.
Qu’ó dispois, cando êle vinher
Tê comio pá licença,
Tê pai, c’o bem que te quer,
Vai dezer que sim, mulher,
Pâ cunsolar a criença.
Cásim vocês! Tamêm eu
Que’stou aqui me casei.
E o pão alvo que Dês deu,
Apresantado no céu
Seja sempre, à bũa lei!
E adês! A Virze te impare
E te dê sorte, Maria.
E sejas o sol e o ar
Do moço que te luvar
Para a sua cumpanhia.
Arco da Traição de Coimbra, 10-VII-22
Poema incluído no volume I — Poesia 1916-1940 — da coleção Obra Completa de Vitorino Nemésio, dirigida por Luiz Fagundes Duarte. Em publicação
NOTA de L.F.D. à edição de 2006: «Neste poema, o Autor procurou reproduzir, por meio do alfabeto convencional, as caraterísticas fonéticas do falar do povo da Ilha Terceira, recorrendo no entanto, quando as limitações do alfabeto não permitiam os efeitos desejados, a alguns sinais diacríticos do alfabeto fonético internacional.»