Em 1765, Setúbal era uma vila com pouco menos de 12 000 habitantes. Era uma vila beata, onde existiam cerca de 12 conventos, e também muito tradicional. A economia florescia graças ao sal, que era exportado, nomeadamente para os países nórdicos, aos pomares, ao peixe e ao azeite. Era uma vila ainda a recompor-se do Terramoto que dez anos arrasou Lisboa e abalou o mundo. Foi neste cenário, conta-nos Daniel Pires, que nasceu Manuel Maria de Barbosa l’Hedois du Bocage, uma das mais complexas e notáveis figuras do Iluminismo em Portugal, um autor versátil que entrou em colisão declarada com a estética literária estabelecida, com a moral mais conservadora e com a hipocrisia dos costumes daquele século XVIII. «A sua autenticidade, se tivesse sido expressa, cinco décadas antes, tê-lo-ia levado à fogueira, como aconteceu com António José da Silva, ‘O Judeu’», prossegue Daniel Pires, coordenador da Obra Completa de Bocage, publicada pela Imprensa Nacional em 2019.
Daniel Pires licenciou-se em Filologia Germânica e doutorou-se em Cultura Portuguesa pela Universidade de Lisboa. Aluno era «muito disperso, sem disciplina, com resultados pouco recomendáveis». Mas esses anos de estudante foram também anos «impressivos, marcantes e de descoberta». Entre os seus principais mestres figuram: Alvarina, sua mãe; António Mateus Vilhena, seu fraterno amigo; António Gedeão, poeta, cientista, inventor; Martin Luther King, Galileu e Jaime Rebelo «o Homem da boca cerrada», entre muitos outros. Quanto a Bocage, descobriu-o por volta dos 15 anos «em plena adolescência, pela via do erotismo e da sátira».
Daniel Pires tornou-se depois professor em São Tomé e Príncipe e em Moçambique, foi ainda leitor de português nas Universidades de Glasgow, Macau, Cantão e Goa. Da sua passagem pelo oriente aprendeu o elogio da diferença e o conceito vivido da «alteridade».Correu mundo e voltou a Setúbal, cidade onde não nasceu mas onde diz ter adquirido as suas «traves mestras da cidadania». E foi aí que em 1999, fundou o Centro de Estudos Bocageanos, um centro que pretende «restituir a Bocage o estatuto que deveria ter» e «libertá-lo da ganga que o liga à pornografia e ao anedótico, obliterando o autor genial de poesia». O Centro de Estudos Bocageanos ambiciona ainda «divulgar a sua obra e vincar a sua relevância no panorama literário, social e político português». Uma missão sempre contínua.
Em 2015, as comemorações dos 250 Anos do Nascimento de Bocage constituíram o enquadramento ideal para o surgimento de um outro título importante para a Imprensa Nacional, também ele liderado por Daniel Pires: Bocage. A Imagem e o Verbo. E já no início do próximo ano (2020) Daniel Pires prepara-se para lançar, na editora pública, mais dois livros dedicados ao poeta: uma Biografia, fruto do trabalho de mais de 30 anos de investigações, e um Essencial Sobre… Daniel Pires quer publicá-los na Imprensa Nacional porque «nenhuma instituição estaria mais vocacionada para publicar Bocage, porquanto estamos em presença de um clássico da nossa literatura, cuja obra ombreia com a de Camões e com a de Fernando Pessoa».
Para Daniel Pires, Bocage é «um facho da liberdade, que permanece aceso» e talvez isto explique porque merece estar sempre iluminada a estátua que o celebra mesmo no centro do coração da cidade do Sado.
Aproveitámos a visita de Daniel Pires à Exposição que celebra os 250 Anos da Imprensa Nacional, Indústria, Arte e Letras, para conversarmos com ele.
Imprensa Nacional (IN) — Como nasceu a ideia de publicar a obra completa de Bocage na Imprensa Nacional?
Daniel Pires (DP) — A Imprensa Nacional é uma editora extremamente prestigiada. Além de ser depositária da memória cultural do nosso país, é uma instituição plurissecular. Nenhuma instituição estaria mais vocacionada para publicar Bocage, porquanto estamos em presença de um clássico da nossa literatura, cuja obra ombreia com a de Camões e com a de Fernando Pessoa.
IN — Como está organizada esta coleção?
DP — A obra de Bocage é multímoda e extensa, facto que não deixa de ser surpreendente visto que faleceu com apenas 40 anos. Poder-se-á afirmar que a poesia fazia parte do seu biorritmo. Ele próprio acentua que poetava desde tenra infância:
«Versos balbuciei co’a voz da infância!
Vate nasci; fui vate, inda na quadra
Em que o rosto viril, macio e louro
Semelha o mimo da virgínea face…»
Sabe-se ainda, por outro lado, que publicou a sua primeira obra com 25 anos e que, poucas horas antes de falecer, compôs uma das suas composições mais emblemáticas, intitulada «Já Bocage não sou, à cova escura…». Deste modo, a poesia acompanhou-o durante toda a vida, ou seja, estamos em presença de um «compulsivo da escrita».
Ora, o objetivo que presidiu a esta edição foi reunir a obra completa do escritor e enfatizar o seu inequívoco mérito. É a quarta vez que tal acontece, sendo as edições anteriores da responsabilidade de Inocêncio Francisco da Silva (1853), Teófilo Braga (1875) e Hernâni Cidade (1969). Em 2005, com a chancela da «Caixotim», foram publicados alguns volumes, que organizei, mas este empreendimento ficou a meio.
O primeiro volume da presente edição, constituído por dois tomos, apresenta cerca de 1400 páginas e inclui toda a sua poesia. Abra-se aqui um parêntesis para recordar que Bocage era muito versátil – cultivou praticamente todos os géneros poéticos da época, designadamente o soneto, mas também a cantata, a canção, o epigrama, a écloga, o epitáfio, o madrigal, a ode, a epístola, a poesia sobre mote, o elogio e o idílio, entre outros. Dever-se-á ainda afirmar que, embora prevaleça a poesia lírica, foi igualmente autor de composições satíricas, de intervenção social, eróticas e ainda de fábulas, à boa maneira clássica e de acordo com os parâmetros do Iluminismo, corrente filosófica, científica e cultural, que se impôs a partir, sensivelmente, do primeiro quartel do século XVIII. No segundo volume, encontram-se todas as suas traduções: de autores latinos (Virgílio, Ovídio – o autor de cabeceira de Bocage –, Lucano e Ausónio), gregos (Mosco e Bíon de Esmirna), franceses (entre outros, Voltaire, Louis de Racine, Dorat, Castel, d’Arnaud, Dubois-Fontanelle, Perrault, Delille, La Fontaine e Madame du Bocage, a tia-avó do poeta que escreveu uma epopeia de homenagem a Cristóvão Colombo, intitulada «La Colombiade»), italianos, suíços e escoceses (Torquato Tasso, Gessner e MacPherson).
O terceiro volume contempla as famigeradas Poesias Eróticas, Burlescas e Satíricas, eventualmente, a obra mais proibida da literatura portuguesa.
IN — O que traz de novo a edição da Imprensa Nacional em relação à edição anterior? [Caixotim, creio]
DP — Entretanto, muita água correu debaixo das pontes. Nesta edição, os critérios estão melhor definidos; os estudos prévios são mais profundos e extensos; as notas e as notícias de caráter biográfico são mais exaustivas; foram incluídas as traduções feitas por Bocage; são apresentados doze poemas inéditos; aperfeiçoou-se a pontuação, um problema agudo, dado que a forma de pontuar, hoje em dia, difere substancialmente daquela que era norma no século XVIII; dilucidaram-se factos de caráter biográfico que eram obscuros.
IN — Tem esperança de que com esta nova edição da Obra Completa de Bocage a figura do poeta possa ganhar outra dimensão?
DP — Sim, na verdade, tenho. Julgo que a obra do poeta adquiriu uma dimensão mais ampla e que a sua importância, no domínio da literatura e no âmbito da história das mentalidades, se acentuou.
IN — Como descreveria a vida de Bocage em poucas linhas?
DP — Bocage era oriundo de uma família da burguesia e cedo conviveu com o sofrimento, decorrente do falecimento prematuro da mãe, do encarceramento do pai, acusado injustamente de ter desviado fundos do Estado, e do casamento do irmão com a sua amada. Fraturado e sem alternativas profissionais em Setúbal, uma pequena vila na época, alistou-se nas forças armadas; porém, a rígida disciplina militar colidia com a sua sensibilidade de poeta, tendo acabado por desertar da Marinha. Uma amnistia providencial possibilitou-lhe o regresso aos meios castrenses, tendo então percorrido as sete partidas do mundo – Brasil, Moçambique, Índia, China e Macau –, em busca de paz interior, que nunca vivenciou. Nova deserção e a consequente miséria. Não obstante, tal peregrinação enriqueceu a sua filosofia de vida, forjou-lhe uma consciência social que estava nos antípodas daquela que o Antigo Regime plasmou.
IN — Acha que a figura lendária de Bocage – a do poeta promíscuo, boémio, até mesmo folclórico — trai a memória dos seus versos?
DP — Houve um equívoco que tarda em ser reparado e que prejudicou muito o conceito que temos do escritor. Em 1853, Inocêncio Francisco da Silva publicou as Poesias Completas de Bocage. Chegado ao volume VI, parou para meditar: concluiu, então, que a obra não estava, de forma alguma, completa, pois faltavam os poemas eróticos, os satíricos e os burlescos, os quais não tinham sido incluídos naquela edição porque a Censura os não deixaria passar e ainda porque o responsável editorial poderia ter problemas graves com as autoridades. Recorde-se que Inocêncio era funcionário público. Este bibliógrafo preparou então, clandestinamente, o volume VII, recolhendo manuscritos que estavam na posse dos amigos, inquirindo sobre a sua biografia e personalidade e contextualizando os factos menos claros. Às suas mãos veio parar um caderno que ostentava na capa a menção «Poemas de Manuel Maria de Barbosa du Bocage e de Pedro José Constâncio». As composições não estavam assinadas, sendo, portanto, impossível distinguir quais eram as da lavra do primeiro e quais as do segundo. Para cúmulo, Pedro José Constâncio imitava, na perfeição o seu mestre, fazendo parte de um grupo que veio, mais tarde, a ser denominado os «Elmanistas».
Embora não fosse capaz de os identificar, Inocêncio decidiu incluí-los na sua edição das Eróticas, explicando esta decisão numa longa nota e remetendo para o leitor a incumbência, se assim o desejasse, de fazer a necessária separação. Sabe-se, por outro lado, dos problemas mentais de Constâncio, decorrentes da sífilis que o assolava e da vida imoderada e desprotegida que levava.
A leitura de alguns volumes de poesia fescenina existentes na Biblioteca Municipal do Porto permite-nos conhecer quais são os poemas que foram compostos por Pedro José Constâncio e que são atribuídos a Bocage. Esta é uma das novidades da presente edição. Infelizmente, confundindo erotismo com pornografia, a tradição atribui a Bocage a autoria dos mencionados poemas.
IN — A obra de Bocage é tão multifacetada, vai da dramaturgia, à tradução, à poesia. A quem se deve, então, esse estereótipo de Bocage, a do poeta boçal? Aos biógrafos, às editoras, a ele próprio?
DP — A ele próprio não me parece. Deve-se, acima de tudo, à confusão que reinou depois da publicação das Poesias Eróticas, Burlescas e Satíricas. Com efeito, antes do 25 de Abril, venderam-se milhares de exemplares, clandestinamente, embora apresentassem no frontispício a menção de que o local de edição era Cochinchina, Bruxelas, Paris, London, Baía, Rio de Janeiro, Amesterdão, Leipzig, etc. Os prelos eram sempre lisboetas, perante o desespero das ciosas e moralistas autoridades e o sorriso trocista dos responsáveis editoriais. Claro que editores oportunistas exploraram igualmente o filão da pornografia e do anedótico, atribuindo-lhe poemas e anedotas que lhe não pertenciam. Hoje em dia, a consulta do Google ainda nos presenteia com informação sobre Bocage que repete os erros que assinalámos, apresentando-o de uma forma primária e redutora.
IN — Quem foram os principais biógrafos de Bocage?
DP — Comecemos pelos biógrafos contemporâneos do poeta. António Maria do Couto e Costa e Silva, beneficiando do facto de terem sido amigos do escritor, na sequência do seu falecimento, deixaram-nos depoimentos que nos permitem conhecer a sua vida boémia. Os elmanistas contribuíram igualmente para o estabelecimento de aspetos biográficos e poéticos, sobretudo Pato Moniz, responsável pela publicação da obra Verdadeiras Inéditas, Obras Poéticas de Bocage, uma edição póstuma, em dois volumes, que desautorizava a de Desidério Marques Leão, autor de uma antologia descuidada e sem rigor. Pato Moniz veio a morrer em Cabo Verde, na Ilha do Fogo, por ser apologista dos ideais do «Vintismo» e que desmascarou, também naquela obra, a hipocrisia de José Agostinho de Macedo, que, insidiosamente, se aproximara de Bocage, nos últimos meses da sua vida. Segue-se, cronologicamente, Inocêncio Francisco da Silva, cuja edição, de 1853, é a matriz de todas as que se seguiram. Trouxe à colação muitos textos inéditos, anotou exaustivamente e deu-lhes coerência interna, facto relevante, considerando a dispersão em que estavam. Teófilo Braga, em 1902, deu à estampa uma biografia que disponibiliza elementos novos, não obstante apresentar igualmente interpretações especulativas. No século XX, Hernâni Cidade e Mário Domingues traçam-nos um Bocage multímodo e irreverente, contribuindo para o conhecimento do verdadeiro poeta. Em 2002, Adelto Gonçalves realizou um sólido trabalho de arquivo e, sem especulações, equacionou a matriz de vida do escritor. Coube-lhe, entre outros atributos, descobrir a casa onde o poeta nasceu – erroneamente localizada até então –, reconstituir os meandros familiares, designadamente o encarceramento do pai do escritor, José Luís Soares Barbosa, e clarificar muitas sombras que envolviam a sua biografia.
IN — O segundo volume da Obra Completa é dedicado às «Traduções», e versa autores greco-latinos, franceses, italianos e um britânico, prevalecendo os escritores clássicos e os franceses. Escreveu no prefácio da obra que Bocage «foi um tradutor de mérito». Como é que Bocage teve acesso a todos estes autores?
DP — O Iluminismo, doutrina filosófico-científica que se impôs no século XVIII, tinha como paradigma a cultura clássica, ou seja, a greco-latina. Esta era estudada em profundidade. Acresce a cultura francesa, que irradiava as suas luzes para o resto do mundo. Bocage, membro da burguesia, classe então ascendente, percorreu os escaninhos daquele distinto património.
IN — Quais os principais autores que Bocage traduziu?
DP — Sobretudo, Ovídio, seu autor de cabeceira, dadas as afinidades existentes – no domínio da poesia e da biografia: recordemos que ambos foram flagelados pela inveja dos medíocres e sofreram as agruras do ostracismo e da miséria. Mas também Cervantes, a partir do escritor francês Florian, Virgílio, La Fontaine e as suas fábulas universais, Voltaire, bem como Madame du Bocage, sua tia-avó.
IN — Bocage foi tradutor da Imprensa Nacional, Imprensa Régia. Que traduziu ele para esta casa?
DP — A Casa Literária do Arco do Cego era possuidora, no âmbito da edição, dos instrumentos e das técnicas mais sofisticados então existentes no país. Foi fundada tendo, sobretudo, em mente o Brasil, território particularmente rico e ainda inexplorado. Publicou obras que equacionavam a agricultura, a mineração, a arquitetura, a economia, a saúde, entre outros assuntos. Ao longo de cerca de dois anos, publicou mais de 8 dezenas de livros. Bocage auferia pelas suas traduções 12800 réis mensais e tinha ainda direito a receber 200 exemplares, ou, se preferisse, uma soma equivalente. Verteu, em 1800 e 1801, várias obras que saíram com a chancela daquela editora: Os Jardins ou a Arte de Aformosear as Paisagens. Poema de M. Delille; Canto Heróico sobre as Façanhas dos Portugueses na Expedição de Trípoli, de José Francisco Cardoso; As Plantas. Poema de René Richard Castel; O Consórcio das Flores. Epístola de Lacroix a seu Irmão. Graves problemas administrativos conduziram ao encerramento da Casa Literária do Arco do Cego, cujo equipamento foi incorporado na Impressão Régia. Esta, por sua vez, no ocaso da vida do poeta, em 1805, deu à estampa uma peça de teatro sua, intitulada Erícia ou a Vestal, que foi censurada. Praticamente todas estas obras conheceram reedições, em 1811 e 1812, no Rio de Janeiro, com a chancela da Impressão Régia, ou seja, da Imprensa Nacional, por iniciativa de membros da corte que acompanharam D. Maria I na sua ida para o Brasil, perante a iminência da primeira invasão francesa.
IN — Por ser um revolucionário, um ativista e uma pessoa não grata ao regime, sofreu na pele as consequências. O cárcere foi útil para a obra que conhecemos hoje em dia?
DP — Sim, a experiência do cárcere acompanhou-o ao longo da vida. Com efeito, na investigação que fizemos, deparámos não com uma detenção, tradicionalmente assinalada pelos biógrafos, mas com quatro. A privação de liberdade marcou-o indelevelmente, como se infere da leitura de uma parte importante da sua poesia. Deve-se dizer ainda que a repressão lhe ensinou a melhor metodologia para a evitar. Com efeito, para fugir às malhas da Censura, os prefácios que redigiu são sempre crípticos, exigem um leitor atento, que saiba ler nas entrelinhas.
IN — A sensibilidade feroz de Bocage embaraçou muitos poderosos. Quem foram os principais visados? Pina Manique, por exemplo?
DP — Setores da nobreza improdutivos, que auferiam uma riqueza apenas por estatuto foram criticados pelo poeta. Alguns membros do clero regular e secular foram-no igualmente. Pina Manique, que pertencia a um setor do regime fundamentalista e que o perseguiu particularmente, teve lugar cativo em alguns dos seus poemas, por exemplo, naqueles que dedicou a Vincenzo Lunardi e à Marquesa de Alorna. Na época, os membros do aparelho de Estado não eram suscetíveis de serem criticados, muito menos publicamente. Tal atitude do escritor denota muita coragem.
IN — Bocage, considerado o maior representante do arcadismo em Portugal, entrou em colisão declarada com a estética literária do seu tempo, sem por isso deixar de ser reconhecido e apreciado entre as classes letradas da época. E as classes populares também o apreciavam? Até porque naquela época a poesia mais do que lida era ouvida…
DP — Bocage viveu entre duas águas, antes e depois da Revolução Francesa, no consulado do Marquês de Pombal e no reinado de D. Maria I. Eis uma época em que sopraram fragorosamente ventos contraditórios. Na sua produção literária coexistem classicismo (nos temas, nas traduções, nos paradigmas) e pré-romantismo (na afirmação enérgica do «eu», na expressão torrencial das emoções, por exemplo). As classes letradas admiravam-no, como se depreende da leitura da lista de assinantes das suas obras. Embora a sua poesia apresente claras dificuldades de interpretação, as classes menos cultas apreciavam-na igualmente, devido à forma vibrante como ele a dizia, à sua capacidade de insinuação e ao seu humor peculiar.
IN — Na nossa literatura, quem foram os primeiros a gostar de Bocage?
DP — A obra de Bocage era transversal à sociedade, pelos motivos anteriormente apontados. Entre os letrados, a Marquesa de Alorna – tradutora brilhante, nomeadamente do alemão, e poetisa –, Filinto Elísio, William Beckford, grande romancista e músico, Heinrich Link, cientista alemão que visitou Portugal, a Marquesa de Abrantes, isto é, Laura Junot, mulher do general de Napoleão, Frei José da Conceição Veloso, José Liberato Freire de Carvalho, entre outros.
IN — E quem foram os seus «discípulos»?
DP — Inúmeros poetas, em Portugal e no Brasil, na realidade, o seguiram, os «Elmanistas», assim se denominavam. Eis alguns: Nuno Álvares de Pato Moniz, Francisco Solano Constâncio, Pedro José Constâncio, Tomás António dos Santos e Silva, o Morgado de Assentiz.
IN — Bocage cultivou quase todos os géneros líricos da época. Sonetos, Sátiras, Odes, Epístolas, Idílios, Apólogos, Cantatas e Elegias. É exagero comparar Bocage a Camões? Porquê?
DP — Camões, Bocage, Fernando Pessoa são incomparáveis. Os génios não se comparam. Camões escreveu uma epopeia e sonetos que dispensam adjetivação; os sonetos e as cantatas de Bocage ombreiam com a poesia do épico.
IN — As passagens que Bocage fez pelo Rio de Janeiro, por Moçambique e pela Índia levaram-no a identificar o seu destino pessoal e literário com o de Camões? Bocage glosa aliás este tema num dos seus poemas.
Camões, grande Camões, quão semelhante
Acho teu fado ao meu, quando os cotejo! (…)
DP — Sim, são múltiplas as afinidades: poetas de eleição, marinheiros, condenados à marginalidade e à pobreza, infelizes nos amores, atacados por medíocres que subiram na sociedade graças à lisonja…
IN — Em Poesias Eróticas, Burlescas e Satíricas reúne as composições de Bocage. Explica que umas são de autoria duvidosa e outras indevidamente atribuídas ao poeta. Porque decidiu publicá-las também?
DP — Não me cabe excluir poemas de uma edição que já perfez quase duzentos anos. Nada retirei, portanto. Dei-lhe uma estrutura diferente, assinalei os poemas que eram indubitavelmente de Bocage, aqueles que talvez sejam e aqueles que, na verdade, não são da sua lavra. Justifiquei as opções feitas, as minhas propostas de leitura, sem especular, circunscrevi-me sempre a documentos escritos.
IN — Quem poderão ser os nomes por detrás dessas autorias duvidosas?
DP — Pedro José Constâncio, sem qualquer dúvida; outros poetas do século XVIII, que não podiam assumir a autoria porque a repressão se abateria sobre eles, como, por exemplo, António Lobo de Carvalho, também conhecido por «Lobo da Madragoa» e Caetano José da Silva Sotomaior, autor de A Martinhada.
IN — Além de «irreverente» como descreve a escrita de Bocage?
DP — Escrita decantada, limada até à exaustão; muito próxima do étimo latino, daí, também, a sua dificuldade; enérgica; incandescente.
IN — Para si qual é a maior lição que o poeta de Setúbal nos legou?
DP — O legado de Bocage estende-se da estética à ética. Remou contra a maré no mar alto, «sem teto, entre ruínas», parafraseando Augusto Abelaira. A sua autenticidade, se tivesse sido expressa, cinco décadas antes, tê-lo-ia levado à fogueira, como aconteceu, a título de exemplo, com António José da Silva, «O Judeu».
IN — A geografia da sua origem – o Daniel também é de Setúbal – foi fundamental na sua aproximação a Bocage?
DP — Não nasci em Setúbal. E vivi muito tempo no estrangeiro, como leitor de português e, na sequência do 25 de Abril, como cooperante em África, portanto, afastado da cidade. Para ela rumei aos 14 anos, para frequentar o liceu. Porém, as minhas traves mestras da cidadania foram ali adquiridas. Sinto-a como a minha alma mater. Dito isto, sim, sendo Bocage um símbolo indelével da cidade, habituei-me, desde a minha adolescência, a admirá-lo, pela sua irreverência, coragem e pelo erotismo que ressuma da sua obra.
IN — Quando é que descobriu [se começou a interessar pel] a obra de Bocage?
DP — Por volta dos 15 anos, em plena adolescência, pela via do erotismo e da sátira.
IN — O feriado municipal de Setúbal é comemorado a 15 de setembro, o dia de nascimento de Bocage. Isto é uma coincidência? Se não é, quando e quem institui a data?
DP — Não é coincidência. Foi uma das decisões das autoridades, centrais e locais, na sequência do 5 de outubro de 1910. Como é sabido, o PRP, Partido Republicano Português, teve um papel preponderante, em 1905, nas comemorações do primeiro centenário do falecimento de Bocage, aliás, como tivera no centenário de Luís de Camões (1880) e do Marquês de Pombal (1881). Estiveram na cidade em discurso direto alguns dos principais tribunos republicanos, como Teófilo Braga e Manuel de Arriaga.
IN — Como era a Setúbal em que Bocage nasceu?
DP — Setúbal era uma vila, com pouco menos de 12 000 habitantes. Muito beata (havia cerca de 12 conventos) e tradicional. A economia florescia graças ao sal, que era exportado, nomeadamente para os países nórdicos, aos pomares, ao peixe e ao azeite. A vila foi muito afetada pelo Terramoto de 1 de novembro de 1755.
IN — O Daniel fundou o Centro de Estudos Bocageanos, em 1999. Em que é que consiste este centro de estudos?
DP — Pretende, em primeiro lugar, restituir a Bocage o estatuto que deveria ter; visa libertá-lo da ganga que o liga à pornografia e ao anedótico, obliterando o autor genial de poesia; ambiciona ainda divulgar a sua obra e vincar a sua relevância no panorama literário, social e político português. Por extensão, o Centro de Estudos Bocageanos ocupa-se com a divulgação da realidade histórica, artística e literária da cidade de Setúbal.
IN — O Daniel, com a Imprensa Nacional, publicou também Bocage. A Imagem e o Verbo, aquando das comemorações dos 250 anos de Bocage. Está neste momento a preparar uma Biografia de Bocage para sair também na editora pública. Atualmente é possível reconstituir um dia na vida de Bocage?
DP — Penso que sim. Ao longo de vários anos, estudei a sua obra. Preciso ainda de mais alguns para publicar o «Essencial» e um dicionário de Bocage. Senti necessidade de publicar uma biografia do escritor que trouxesse uma nova interpretação e dados biográficos desconhecidos. A obra que vai sair em janeiro tem cerca de cem documentos inéditos, encontrados na Biblioteca Nacional e, nomeadamente, na Torre do Tombo, onde consultei os arquivos da Intendência-Geral da Polícia, da Inquisição, do Ministério do Reino e do Desembargo do Paço. Na verdade, é o corolário da consulta de documentos de acervos das principais bibliotecas e arquivos do país. Parece-me, portanto, possível reconstituir o quotidiano de Bocage, embora os génios sejam insondáveis e imprevisíveis.
IN — Esta biografia, suponho, é fruto de muitos anos de trabalho e investigação. Podemos saber quantos ao certo?
DP — Cerca de trinta anos.
IN — Pode descortinar algumas novidades que vêm aí a propósito da vida de Bocage? Refiro-me a aspetos completamente desconhecidos do público.
DP — A sua iniciação e praxis no seio da Maçonaria; o facto de o poder se ter cindido quando foi encarcerado: o setor fundamentalista, cujo representante mais ativo e poderoso era Pina Manique, quis puni-lo, e os liberais maquinaram, com sucesso, na penumbra dos gabinetes, a sua libertação; o seu percurso académico na infância e na adolescência; o seu quotidiano adverso durante o curso de guardas-marinhas; a decisão de entregar Bocage à Inquisição para ser reeducado, pena incomparavelmente menos dolorosa do que aquela que Pina Manique preconizava, ou seja, o degredo; a frequência do bas-fond de Lisboa.
IN — O brasileiro Olavo Bilac, expoente parnasianismo brasileiro, escreveu a propósito da obra de Bocage: «Em Portugal, a arte de fazer versos chegou ao apogeu com Bocage e depois dele decaiu. Da sua geração, e das que a precederam, foi ele o máximo cinzelador da métrica. (…) Depois dele, Portugal teve talvez poetas mais fortes, de surto mais alto, de mais fecunda imaginação. Mas nenhum o excedeu nem o igualou no brilho da expressão.» Concorda? E porquê?
DP — Eis um poeta de grande estatura discreteando sobre um outro, de não menos valor. Bocage era um metrificador por excelência, com um ouvido apuradíssimo. E a sua capacidade de expressão era notável. A análise da metrificação de Bocage foi fundamental para excluir alguns poemas que, erradamente, lhe foram atribuídos.
IN — É um dos maiores bocageanos da atualidade mas começou por formar-se em Filologia Germânica… Porque optou por este curso?
DP — O exemplo de uma professora de inglês, Dr.ª Isabel Vicente, foi determinante. Dialogava com os alunos, chamando-nos a atenção para a essência das coisas, sempre com uma dignidade impressionante. Na década de sessenta, eram raros os professores que tinham esta abertura.
IN — Foi um bom aluno na Faculdade? Como recorda os seus tempos de estudante?
DP — Muito disperso, sem disciplina, com resultados pouco recomendáveis. Mas os tempos foram impressivos, marcantes, de descoberta.
IN — Quem foram os seus principais «mestres»?
DP — Alvarina, a minha mãe, António Mateus Vilhena, também meu fraterno Amigo, António Gedeão, o poeta, o cientista, o inventor, Lindley Cintra, Charlie Chaplin, José Afonso, Maria Callas, Mahatma Gandhi, Martin Luther King, Galileu, Leonardo, Jaime Rebelo («o Homem da boca cerrada»).
IN — Deu aulas na República de São Tomé e Príncipe, Moçambique, e nas Universidades de Glasgow, Macau, Cantão e Goa. Por que autores se interessavam mais os seus alunos?
DP — Em África, os meus alunos estavam muito motivados para a cultura do seu país; em Glasgow, Fernando Pessoa e Herberto Helder; em Macau, Cantão e Goa lecionava língua portuguesa, quase em exclusivo, a alunos que iniciavam o estudo do português.
IN — Da sua passagem pelo oriente o que mais o marcou?
DP — Compreendi melhor a alteridade, o elogio da diferença.
IN — Se Bocage ocupa um lugar cimeiro, Camilo Pessanha e Wenceslau de Moraes ocupam um lugar especial na vida de Daniel Pires. Esta afirmação é verdadeira?
DP — Sim, é verdade. Foram anos de partilha, de interrogações, de perplexidades, de fruição estética, de «convívio» com dois escritores cimeiros da nossa literatura. Relevantes e, simultaneamente, tão frágeis: na verdade, é assim «a insustentável leveza do ser».
IN — Para terminar, porque merece estar sempre iluminada a estátua que celebra Bocage mesmo no centro do coração de Setúbal?
DP — Bocage constitui um facho da liberdade, que permanece aceso. Uma filosofia de vida que ultrapassa o efémero. A estátua iluminada representa, igualmente, uma sentida homenagem a um escritor mal dito.
Texto e fotografias: Tânia Pinto Ribeiro