Qual é a pior coisa que pode acontecer, do ponto de vista comercial, a um livro? Não, não é ser mal distribuído; não, não é ninguém lhe ligar nenhuma. É o maior pesadelo de qualquer editor: ter uma excelente recensão quando está esgotado (no pior dos casos, por rutura de stock). Os editores não controlam os críticos (por incrível que possa parecer a alguns), e é muito habitual as recensões saírem «quando não devem»: por exemplo, dois meses depois do livro ter sido lançado comercialmente e quando a tiragem inicial se esgotou há uma semana e ainda não houve tempo (e por vezes a decisão) de o reeditar. E foi isso o que me aconteceu na Feira do Livro de Lisboa.
Não, não como editor. Sim — como leitor. Vi algures uma excelente recensão ao A Pediatra (julgo que da mão do José Mário Silva, mas já não o lembro bem) e decidi comprar e ler. O tema interessa-me muito, até porque, como escritor, o quero trabalhar no meu próximo romance: o que sente quem não sente como nós, quem tem uma frieza maior que o habitual? Pensei em trabalhá-lo a partir da psicopatia, mas talvez aí tudo perca o seu motivo de reflexão: um psicopata não tem empatia, para ele todos somos cadeiras — e ninguém pensa o que sente aquela cadeira quando nela nos sentamos. O que quer dizer que perde nebulosidade, o que retira interesse à questão: num romance, tudo preto ou tudo branco não tem metade da piada.
Mas dizia: fui comprar o livro da Andrea del Fuego. Contente e com vontade de o ler, eis que estava em rutura de stock no stand da Companhia das Letras e sem previsão de reposição. Como o que não me falta são livros à espera, aquele ficou numa nota no caderno, aguardando a lembrança, que por ela me calhassem os olhos. Não caíram na nota, mas caíram na livraria: há duas semanas estava em boa exposição a segunda edição do livro.
Fiquei contente e, ao mesmo tempo, pensativo: como se perdem leituras e experiências (e vendas, claro) por causa destes acasos? Quase que o comprei a contragosto — pensando, paradoxalmente, que era bom que fosse mau para poder não ficar triste por quase o ter perdido. Não tive sorte.
O livro é excelente e cumpriu todas as minhas expetativas iniciais, ainda da altura em que li a crítica. A personagem principal fica para a história da literatura, no panteão das inesquecíveis. E é também a mestria da escrita de Andrea del Fuego quem permite isso tudo. Não basta uma ideia, é preciso que ela se concretize em (boas) palavras — ou pelo menos nas certas para o objetivo inicial. Um amigo, a quem falei do livro e do impacto que teve em mim, teve um comentário interessante: «é uma pediatra pedófoba». Já houve certamente noutros meios, livros, filmes, peças. Mas esta, tão densa e, estranhamente, cuidadosa é «a» pedófoba de eleição. Quando alguém se lembrar de colocar a abonação num dicionário qualquer, faz muito sentido arranjar uma citação deste fabuloso livro. Ou então, deixar lá apenas isto: «Pedófoba: Cecília, a Pediatra que a Andrea del Fuego nos ofereceu».