O primeiro livro que editei era uma edição de autor. E só lhe chamei Quasi Edição porque, pouco tempo depois, quereria fazer um com os poemas do meu pai e não fazia sentido chamar a esse «edição de organizador». As coisas nascem das maneiras mais inusitadas.
Portanto, quando as Quasi nasceram, estava eu longe de pensar que os livros iam ser a minha vida: estudava Biologia em Ciências, no Porto, e trabalhava na Campo das Letras, sendo mais secretário do que assistente editorial. Um ano depois do primeiro livro, e já com alguns outros editados, resolvemos criar a empresa e profissionalizar a editora comigo como único trabalhador. E precisávamos de um espaço.
Não havia dinheiro, claro. Por isso, a tudo aquilo que fosse dado não era olhado o dente. Eu tinha um ordenado incipiente, cada livro era pensado numa estratégia de pagar os custos e pouco mais, não havia cá lugar a grandes lugares para laborar. Por isso, quando os meus avós me permitiram ocupar o quarto dos fundos, um anexo feito anos depois de construída a casa e mais perto das galinhas do que da sala, eu disse imediatamente que sim. O meu avô só me pediu uma renda: «quero um exemplar de cada livro que publicares».
O meu avô. José do Carmo tinha a quarta classe. Era serralheiro. Primeiro na Cegonheira, depois na Boa Reguladora, exemplo acabado do corporativismo salazarista. Tinha a seu cargo o torno mais complexo da fábrica onde, com a sua quarta classe, fazia contas inimagináveis para muitos engenheiros. E tinha um fascínio enorme por livros.
Não sei, tenho de confessar, se esse fascínio era depois transposto para a leitura acabada de todos eles. Aquela que o ocupava diariamente, e isso eu sei, era a do Jornal de Notícias e d’A Bola. Mas o pedido que me fez de renda diz bem da vontade que era a dele em ultrapassar o que o destino, mais uma vez salazarento, lhe trouxe: o abandono da escola logo a seguir à Segunda Grande Guerra para poder ajudar na economia familiar.
Eu fui então para o anexo, diga-se. A minha avó tinha uma mesa castanha escura, enorme, daquelas para uma sala de jantar. Era antiga mas servia bem de secretária e lugar de arrumo das pastas que cada livro e projeto iam tendo. Quem entrava no compartimento, via-me sentado numa mesa de jantar com um monitor enorme (era eu quem paginava os livros, também), daqueles que parecia uma televisão mas em branco. E, espalhados ao meu redor, pastas e documentos e originais e livros e livros e livros. E quando começaram a chegar os que íamos fazendo, era ver numa pequena estante, atrás de uma secretária que lhe sobrara de um neto, dessas mais modernas e onde lia o seu jornal, os livros a ganharem espaço. Havia muitos outros, em armários mais antigos e também eles muito mais antigos. Os clássicos todos, coisas das Selecções, coisas do Círculo. E, na sala da casa, uma edição emblemática da Enciclopédia Portuguesa Brasileira que, até ao fim, foi a menina dos seus olhos.
Depois as Quasi cresceram. Eu deixei o anexo, vim ser crescido para o centro da Vila. Mas lá fui deixando um livro de cada durante os anos seguintes. E, hoje, é vê-los todos pousados na mesma estante, já bem mais completa. Aqueles livros não eram só a renda perpétua por me ter permitido começar uma editora. Eram também a vontade de um serralheiro em ter atrás dele a leitura que a vida lhe tirou.
Só falta o senhor José do Carmo, que a velhice levou no começo deste mês aziago de abril. A secretária está vazia para sempre. Mas os livros continuarão eternamente naquele local a sinalizar a tua vida, avô.
(A Biblioteca do Avô é o título de um livro infantil de Maria do Rosário Pedreira, que editei há mais de 15 anos nas Quasi.)