Aristides de Sousa Mendes sabia que, dando um horizonte de esperança a milhares de pessoas em fuga, vindas de vários países da Europa ocupada, fazia pairar sobre si e sobre a sua família nuvens de incerteza e de temor. Para ele não haveria perdão do regime de Salazar. Disso tinha a amarga certeza. Era esse o castigo para quem desobedecia ao ditador.
Numa carta aos filhos escreveu: «Não sei o que é que o futuro reserva para a vossa mãe, para vocês e para mim mesmo. Materialmente, a vida não será tão boa para nós como tem sido até agora. Contudo, sejamos corajosos e tenhamos em mente que, ao dar a esses refugiados a possibilidade de viverem, temos uma possibilidade mais de entrar no Reino dos Céus, porque ao fazê-lo não faremos mais do que praticar os Mandamentos de Deus.»
Era em nome do Deus da sua crença, o dos católicos, que se recusava a aceitar que a crença de outras pessoas num outro Deus lhes pudesse valer a perseguição e morte. Para ele, isso não podia fazer sentido. Era a sua consciência quem lho dizia.
— Pai, o que é que nos vai acontecer? — perguntava um menino ainda com roupas de inverno, vindo de muito longe, ao homem de barbas e chapéu cinzento na cabeça que lhe apertava a mão com força, tentando transmitir-lhe uma sensação de segurança.
— Vamos ver, meu filho, vamos ver. Tudo de¬pende daquele senhor português que mora naquela casa grande. Vamos ter esperança, porque ele há de ter pena de nós.
Poucas horas mais tarde, o cônsul Aristides de Sousa Mendes dava esta ordem aos agentes da polícia que estavam ao serviço no Consulado:
— Fazem o favor de deixar entrar todos os refugiados que estão à espera para pedir vistos.
Eles cumpriram a ordem, apesar de um funcionário do Consulado ter feito questão de lembrar a Aristides de Sousa Mendes:
— Estamos a desrespeitar ordens de Lisboa, e isso é muito grave, Sr. Cônsul, mesmo muito grave. Sabemos que este ato vai ter consequências.
O cônsul não recuou. Estava determinado a ir até ao fim, acontecesse o que acontecesse.
Nessas horas terríveis, que são sempre aquelas em que se descobre a matéria moral de que são feitos os verdadeiros heróis e os seres humanos em geral, o cônsul escreveu, para que mais tarde outros pudessem compreender o seu gesto e a coragem do seu ato: «Tudo está agora nas minhas mãos, para salvar os muitos milhares de pessoas que vieram de todos os lados da Europa na esperança de encontrar refúgio em Portugal. Todos eles são seres humanos, e o seu estatuto na vida, religião ou cor são totalmente irrelevantes para mim. Além disso, as cláusulas da Constituição do meu país relativas a casos como o presente dizem que, em nenhuma circunstância, a religião ou as convicções políticas de um estrangeiro o impedirão de procurar refúgio no território português. Eu sou cristão e, como tal, acredito que não devo deixar esses refugiados sucumbir. Uma grande parte deles são judeus, muitos dos quais são homens e mulheres com situações proeminentes que, devido à sua posição social, como dirigentes e outros, sentiram nos seus corações dever de falar e agir contra as forças da opressão. Fizeram aquilo que nos seus corações era o que devia ser feito. Agora querem ir para onde possam continuar a luta por aquilo que consideram justo.»
Aristides de Sousa Mendes contava com o apoio da mulher e dos seus colaboradores mais chegados, mas também com a compreensão dos filhos, que iriam ser, ao longo da vida, vítimas injustas do seu ato de coragem.
Abertas as portas do Consulado, reacendeu-se a esperança em milhares de pessoas. As filas eram intermináveis, mas iria esperar-se o tempo que fosse preciso, pois eram vidas e sonhos que estavam em causa. Vencida aquela etapa, estariam em Espanha e depois em Portugal, a caminho de uma nova vida, de um recomeço, de uma renovada energia. Para trás ficavam as dores e as fadigas de intermináveis caminhadas até conseguirem chegar a França. Um dia, esperavam eles, haviam de esquecer esses tempos sofridos, tão amargos, tão incertos.
— Mãe, tenho sede, muita sede — queixava-se uma menina polaca, incomodada com o calor intenso que se fazia sentir naqueles dias que antecipavam um verão tórrido.
— É preciso ter paciência, minha querida, que já não há de faltar muito — respondeu a mãe, alentada pela abertura das portas do Consulado, atitude que fez renascer a sua tão minguada esperança.
Estava-se a 18 de junho, e apenas quatro dias mais tarde, apesar dos apelos do general De Gaulle e resistência firme dos seus compatriotas, França rendia-se às tropas alemãs. Era a vergonha nacional e o fim da esperança na Europa. Se França tinha caído, tudo agora podia acontecer.
D. Angelina, a mulher do cônsul, auxiliada pelos filhos e pelos empregados do Consulado, cozinhava alimentos em grande quantidade, remendava roupas e renovava abastecimento de água, desejando minorar o sofrimento de quem já viera de tão longe em fuga do terror e da ameaça de morte. Não havia mãos a medir. Falava-se mui¬to pouco e agia-se com rapidez e determinação. Tratava-se de salvar vidas. Portanto, era preciso atuar muito depressa, sem hesitações nem dúvidas, seguindo o exemplo de Aristides de Sousa Mendes. Tinham refugiados dentro do Consulado e queriam que eles fossem tratados com dignidade e respeito, nada importando as suas crenças religiosas e a sua raça.